Recensões |
Silva Carvalho Teoria da
Disponibilidade Porto, Brasília
Editora, 1994 Teoria
da Disponibilidade: de Silva Carvalho Teoria da
Disponibilidade (TD, Porto, Brasília Editora, 1994) prolonga e desloca
O Princípio do Eco (PE) (1). TD
prolonga PE porque há todo um feixe de modulações sobre o impoder da voz com novas sequências (onde se destaca a p.
58, inteiramente "disléxica", nas suas falhas do falar estruturador
do discurso). Mas o que era exibidamente medular em
PE, aqui parece-me mais subterrâneo, para eclodir a «disponibilidade".
Disponibilidade para quê, ou para quem ou para onde? É aqui que há um
deslocamento, configurado em dois aspectos. Primeiro
aspecto. Resumiria em duas passagens (que são deslassadas no final do livro).
"Não faz sentido fazer sentido" (59); "[...] quando aceito a dádiva do dizer, / a experiência do
que nunca, / possivelmente, teve a oportunidade de ser sentido. / De fazer
sentido. [...]» (84). (Existem outros ecos internos do livro: por exemplo, a
p. 47 parece responder – "nada se alcança" – à p. 43 –
"chegar, mas chegar onde?". Mas estes ecos, e outros, podem ser por
ora condensados naquelas duas passagens.) Não faz sentido
fazer sentido e estou disponível para o que a língua me faz sentir fazendo-me
sentido. "E no entanto a humanidade inventou línguas...",
exactamente: sentido é o que encadeia desencadeando, é o que está entre essas
"duas palavras apenas". Este livro é a invenção de uma língua que
faz e desfaz sentido, do sentido e do real, de uma escrita com o real
("Nunca a realidade da realidade. Nunca o sentido do sentido." –
porque já não há identidade – paradigma clássico – nem autonomia
– paradigma moderno, da escrita em relação ao real). Daí o trabalho
incessante na sintaxe (na "ordem"). A sintaxe (suntaxis,
sun, "com", e taxis,
"ordem") devém toda ela uma parataxis (pará,
"aproximação" e "oposição"). A sintaxe devém uma
suspensão a-semântica do discurso. Precisamente: disponibilizar o
discurso: dis-por, isto é, separá-lo
desviando-o. É possível escrever com uma parataxe (no lugar da sintaxe)
fazendo sentido? E todo o repto da disponibilidade (da escrita e da leitura:
da escrita na leitura, e da leitura/escrita). Mas,
no final do livro, a disponibilidade para o sentido passa a estar verbalmente
consciente da coincidência com a disponibilidade para morrer "de cada
vez num poema" (pois "nunca escrevi para me furtar à morte",
sendo possível, a partir daqui, desenvolver tudo isto, relacionando as pp.
52, 91, 94, 98). É nesta coincidência, que ao longo da escrita no tempo se
vai disponibilizando, que o livro ganha um contágio iriante extraordinário.
Porque aí coincide e deslassa-se o que se teceu: "[...]
um prazer tão grande não ter descoberto / nada no nada que se descobre [...
J" (91). Que se descobre. Isto é, na senda do nada, não é uma substância
residual do sentido o que se desvela, mas o desvio do que não permanece.
Passagem do des-cobrir para o inventar. (A este
respeito, ler o ensaio de Derrida, "L'Invention de l'autre" (2).) Segundo
aspecto. É a revalorização, por deslocamento, da noção de "Teoria".
E aqui através de dois procedimentos: da resistência à teoria (a uma
determinada concepção da "teoria"), por exemplo nas pp. 56 e 81; e
da ironia para com a teoria (de um tipo de ironia que já não é romântica, por
exemplo, p. 95). Era preciso ver agora que "resistência" e que
"Ironia". Mas para já vislumbro que "deslocamento". Eu
penso que se opera um movimento da mesma índole – a um tempo linguística e
civilizacional – que o testemunho do "Fragmento 4" de Da
Estupidez (3).
Se aqui se tratava de deslocar o pejorativo, agora trata-se de deslocar o
discurso conceptual, alargando-lhe as ressonâncias e as interferências num
cruzamento incessante de discursos sem privilégios ou hierarquias (fazendo,
igualmente deles, "um momento ou um motivo de criatividade»). Não é só o
mimetismo de repetir que não há «linguagem poética", é o facto de a porética praticar o cruzamento e a deriva inauditas de
todos os discursos que advém à fala. Um
terceiro aspecto, a ser estudado em detalhe, seria o de relacionar os dois
precedentes. Que teoria da disponibilidade, isto é, depois de se
compreender qual a ordem dos significados deslocada pela disponibilidade,
e qual a ordem dos significantes deslocada pela teoria,
tratar-se-ia enfim de ler quais as formulações concretas para uma
"teoria" disponível, e para a disponibilidade à "teoria".
As páginas anotadas penso que são o ponto de
partida, porque o que interessa é ler o que emerge como irredutivelmente do
autor (independentemente de, aqui e ali, se poderem ler assimilações
transformadas de tal ou tal "teoria" – e nisto, resolutamente,
Silva Carvalho se distingue de um Antero). (Entretanto, é discernível uma
"teoria ambulante da leitura", onde se frequenta o texto mais do
que se interpreta, com constantes injunções ao leitor para se levantar e
consultar o dicionário – p. e. : p. 96 -, assim como
outras injunções mais discretas. Por isso lhe correspondem, na «teoria
ambulante da escrita", como autênticos alicerces do discurso, aquilo que
eu chamaria, provisoriamente, "didascálias para um solo sem encenação ,
como se o eu de enunciação balbuciasse e se fosse certificando de uma
presença que impermanece, cirandando-o – é
um verbo que neste livro aparece nevralgicamente – pelo discurso: são
as constantes auto-indicações, que se ampliaram e
complexificaram: "digo-me", "penso", "sinto",
"sussurro", "replico", «ouço-me dizer",
"pergunto", "sorrio", "surpreendo-me", etc.). Um
outro aspecto, porém este é dos que menos aprecio, é aquilo a que chamaria o
"bordão dos significantes". Em certos momentos, Silva Carvalho
apoia-se no «emaranhado das palavras", dando a sensação que, no
esgotamento total do poder identificador e compensador da linguagem, apenas
restasse como esteio um reenvio infindo de sonoridades de palavras para
palavras (é certo que não são calembours
puros, cuja origem fosse discernível para lá da superfície, mas ainda assim,
por vezes, é devedora de uma prática do calembour,
que é, penso eu, ainda um momento de negatividade da desconstrução da
linguagem e, nalguns casos, como bem observa Deleuze (4), está ainda à procura de um primeiro
princípio, à procura de restituir, pela fixação/desconstrução dos significantes,
um "princípio no princípio" – e isto é muito menos interessante do
que o trabalho na sintaxe e o cruzamento dos discursos, onde se parte sempre
"a meio" do verso. Cf., p. e., 60, 61, 85). NOTAS: (1) Porto, Brasília Editora, 1993. (2) in Psyché,
Paris, Galilée, 1987 (3) Do mesmo autor, Porto, Brasília Editora, 1988. (4) in Dialogues
[com Claire Parnet],
Paris, Flammarion, 1977. Tomás
Maia, 16.2.95 (texto publicado na revista Escritor |
A Linguagem Porética Silva Carvalho Porto, Brasília Editora, 1996 A Linguagem Porética de Silva Carvalho This book should not be dismissed as the potpourri that in one sense
it is. For it mixes critical pieces of evaluation, translations of poems, an
interview, essays ar theorizing, an explanatory
reading or two, and numerous passages relating this
book to author's earlier work – both critical and poetic. Whatever unity the
book possesses lies, to a large extent, in the author's single-minded
intention for it: it is, at its best, insistently heuristic. The essential worth and significant contribution of A Linguagem Porética lies as
much in the author's eye and ear for good literature as it does in his
intelligent way of thinking about literature. If it seems natural for Silva Carvalho to theorize about what the writer does when he
writes and publishes or about what the reader does when he reads such
literature, it seems just as natural for him to serve as a cicerone to books
and texts not always as well known or as widely read as he thinks they should
be. It is in his capacity as informed and intelligent cicerone that 1
choose to approach his own writing in A Linguagem
Porética. Even to students of modern American
poetry it will come as a pleasant surprise to see him championing poets he
has discovered not by following the lead of critics and scholars but through
his own inner-directed reading. Indeed, if one resurrects David Reisman's tripartite division of American character as
"other-directed," "tradition-directed," and
"inner-directed", any reader of Silva Carvalho's
book can readily see that neither of the first two terms applies to him. He
eschews both the well-worn paths of tradition and the newly worn ways of
fashion in favor of making his own, sometimes
lonely, way. Hence under the guise of considering the poetry of Robert
Lowell, Silva Carvalho discovers the long career
and the notable poetic achievement of the still-with-us Hayden Carruth. Following the example of the modern Portuguese he seems most to have
admired and emulated, Jorge de Sena, Silva Carvalho records his discoveries with a narrative of
"what, when and how. "That is to say, he sets down the
circumstances surrounding his discoveries and the detailed sequence of his
deepening appreciations. This reader of poetry, again like his Portuguese
mentor, does not efface himself before the poets he reads and admires. On the
contrary, the synergy of this work of criticism emanates precisely from the
author's fidelity to his awareness that the vitality of literature depends
on, the drama of the two-way flow between reader and writer. Immersing
himself in the work of a poet neither the literary histories nor the
quarterlies have singled out, he achieves a singularly original relationship
with the poetry. But that is not all, for he also must do justice to Carruth's own not inconsiderable critical ability, which
metonymically, in this case, means taking the measure of Carruth's
own understanding of Robert Lowell's poetry. It works: Carruth
examines Lowell's poetry and Silva Carvalho looks
at Carruth's examination critically (and
admiringly). The trick that is pulled off is that one gets a good sense of
what all three principals – Lowell, Carruth, and
Silva Carvalho – are all about. The beat goes on. Reading Carruth's fine
anthology, The Voice That I, Great Within Us, Silva Carvalho discovers William Bronk.
He begins his introduction to Bronk and his poetry
by pointing out that he is certain that Bronk is an
American poet completely unknown to the Portuguese, including those who
devote themselves to twentieth-century American literature. This is entirely
fair, of course, for, as he himself admits, Bronk
is not widely known or studied in the United States either. Rather than
trying to analyze or explain the pessimist Bronk's rationally philosophical poetry, he wisely
provides translations of ten or so poems. These translations are matched with
translations of poems or parts of poems by Wallace Stevens, Robert Lowell,
and Hayden Carruth himself. When Silva Carvalho turns to modern
Portuguese literature, interestingly enough; he does not discover any unduly
neglected poets like the Americans Carruth and Bronk. But he does take the measure of what he considers
to be the inflated reputations of minor poets such as Herberto
Helder, António Ramos
Rosa, and Eugénio de Andrade. Each of these poets,
exemplifying in some form or other a Bloomian
anxiety of influence, fails to emerge as a strong poet in his own right. For
this critic of poetry, the mo great twentieth-century names are those of
(predictably) Fernando Pessoa and (perhaps not so predictably) Jorge de Sena. The above-mentioned poets' cardinal sin, charges
Silva Carvalho, is their individual failure to face
and overcome what he calls the problems inherent in the powerful legacies of
Pessoa and Sena. Sena
himself faced successfully the problem Pessoa posed for him. Not
surprisingly, he emerges as Silva Carvalho's chosen
mentor. In fact, Sena's intriguing novella, O Físico Prodigioso, given
the fullest academic attention in A Linguagem Porética, is given a close reading focusing on the
almost indistinguishable themes of sexuality and eroticism. A second essay on
Sena, arguing that he should be re-read as a
post-modernist, has the virtue of being responsibly provocative. Arguing soundly against the poem as final, polished, rounded off
(perhaps even autotelic) creation, Silva Carvalho
comes out loudly, if I read him accurately, in favor
of poetry as process. He might say something similar about fictional and
non-fictional prose. At its best his work exemplifies what the great nineteenth-century
American thinker and poet, Ralph Waldo Emerson, called for – not the work of
a man of thought but that of a man thinking. Or, to adduce the words of
another of Silva Carvalho's favored
modern American poets, Wallace Stevens, who called for "the poem of the
mind in the act of finding what will suffice." Silva Carvalho
himself might be post-modern enough, I suspect, to expand the meaning of
"poem" in Stevens's fortunate aphorism to cover all texts and most
writing. George Monteiro, texto publicado
na revista Portuguese Literary & Cultural Studies
– Fronteiras / Borders, nº 1, 1998, Center for Portuguese Studies and Culture,
University of Massachusetts - Dartmouth. |
Silva Carvalho A Linguagem Porética Brasília
Editora OUTRA
COISA Haverá
algum anacronismo na miscelânia que Silva Carvalho
intitulou de "A linguagem porética" (Brasília
Editora) e que reúne diversos ensaios e traduções (Wallace Stevens, Robert Lowell, William
Bronk, Hayden Carruth). Contudo,
chamo a atenção do leitor para o ensaio "Uma poesia sem poetas" que
se orienta pela contestação a Eugénio de Andrade ("um poeta
pós-simbolista retardado" da "musicalidade há muito perdida";
pág. 40), a Herberto Helder ("como
poeta mais não fez do que perpetuar a tradição encetada por Platão, a de um
centro, a de uma origem, esse mundo anterior da ideia e da beleza e da
perfeição"; (pág. 41) a António Ramos Rosa ("um poeta
modernista retardado"; pág. 48). Estas
afirmações são sustentadas de acordo com fundamentação de alinhamento teórico
de diferente postura da adoptada pela crítica nacional (mea
culpa) e que enriquece a discussão, contrariando o enquadramento idêntico,
repetido, laudatório que tem recepcionado qualquer escritura menor dos
grandes poetas. De
sublinhar o ensaio sobre Jorge de Sena "Sexualidade e erotismo em o
físico prodigioso". Penso
que o equacionamento de interrogações encrespadas e drásticas de Silva
Carvalho (nasceu em 1948, autor de, entre outros livros, "Pentalogia americana: "Da Estupidez";
"Adivinha: Estilicídio e encíclia";
"Nem prosa nem poesia outra coisa"; "Em questão"; "O
presente, a presença" e de "Trilogia porética:
"O princípio do eco"; "Teoria da disponibilidade";
"Crítica das representações", editados de 1988 a 1996) sobre
esses nomes, independentemente de certo centrifugalismo pessoal, impõe-se numa altura em que a
crítica é o que é (nas cambiantes passivas, exorbitantes), em que assistimos
à destruição de edições de livros que estiveram ni index
de Salazar pelo máximo lucro (ainda uma censura selectiva, silogística de
dogmatismo de motif político), em que
se silencia sobre todos os autores não rendibilizados pelos lobbies (como os
definiu Carlos Candal), em que se premeia os premiados, em que as homenagens
são assoberbantes, em que se perfilha proveitosamente uma oligarquia
intelectual medíocre, etc., etc., é de incentivar outra coisa, outra
consciência cultural, a indignação. José
Emílio-Nelson in Leituras Jornal
de Notícias de 14 Agosto de 1996 |
Silva Carvalho
A Linguagem Porética Brasília
Editora, Não
existe criador literário mais injustamente ostracizado, silenciado, pelo
nosso (português) sistema literário, que Silva Carvalho (n.1948 e que publica
regularmente desde 1977). Não
confundir com Armando Silva Carvalho. O primeiro é um poeta superior, embora
seja o segundo a ser amaciado e louvado pelo meio literário. O que revela bem
dos seus complexos, da sua estreiteza e afecção. Ou segundo Silva Carvalho:
"Ninguém, é o preço do silêncio a que sou
votado desde sempre. como um incessante
desconhecido... Assim nunca mais terei leitores Pátrios." Silva Carvalho
é só, aparentemente, um autor difícil. A desconstrução, o quotidiano e a
revolução, permanentemente se enrolam na sua poesia, cujo personagem
principal é ele próprio. Há uma irrisão da ficção a favor do real. E Jorge de
Sena é talvez a sua influência mais forte. Até na sua relação poemática com a
música, com o real e com o Humano. Igualmente se intromete no Romance com o anti-Romance "Palingenesia", altamente
autobiográfico. Silva Carvalho também é um criador de conceitos como a
"catacrese", "porismo", etc.,
que semeia nos seus livros, em especial de poesia (aí reside o essencial de
sua produção literária). Um dos seus momentos mais brilhantes e
desconcertantes, foi conseguido no livro de ensaios
"A
Linguagem Porética"
(1996, Brasília editora), aonde se abate, sem cerimónias sobre a dita
qualidade excepcional dos nossos poetas da segunda metade do Séc. XX. Em
especial. ataca a trindade imaculada, Eugénio de
Andrade, Herberto Helder, e António Ramos Rosa, e a
tudo que representam de espasmo órfico, remetendo-os para a classificação
pouco lisonjeira de ultramodernistas. Finalmente, alguém os sacudiu do podium. Mas mesmo este seu talento de polemista ou de
provocador, foi, nesta terra de asnos e sopeiras,
reduzido a zero, anulado, numa espécie de conspiração do silêncio (não
premeditada, o que a agrava). Fazem de conta que não existe. O que se torna
altamente confrangedor, quando estamos perante um dos mais poderosos e
inquietos criadores literários dos últimos 30 anos em Portugal. "A
tarefa, disse-o tantas vezes, e disse-o
humildemente, é imensa. Não só mudar o mundo, que se transforma todos os
dias, mas mudar a mudança" ("O Romance Contemporâneo",
Tertúlia editora). Em suma: um enorme poeta. J.J.Urbano in Número
Magazine n.º 11 de Novembro Dezembro de
2001 |
Silva Carvalho,
A linguagem Porética, O
CASO SILVA CARVALHO É impossível abordarmos os escritos de Silva Carvalho sem um
preâmbulo. Trata-se, com efeito, de um autor português que publica de maneira
regular desde 1996, ou seja, há 28 anos, sendo ignorado (com as excepções da
praxe) pela crítica literária. Entre 69 e 96 publicou dezanove títulos, de
poesia e ensaio; o primeiro em edição do autor, os restantes em cinco
editoras, a maioria dos quais na Brasília, do Porto. Não é só o caso de Silva Carvalho que revela a indigência da
crítica literária em Portugal, visto outros casos igualmente eloquentes a
atestarem (os de Manuel da Silva Ramos e Alface ou de Alberto Pimenta, por
exemplo). Mas é importante referi-lo, tendo em conta a quantidade de
publicações (e até “espaços televisivos”) onde esta famosa crítica é
regularmente exercida por uma pequena multidão de profissionais,
especialistas e exegetas. É importante porque isto nos põe perante a certeza de
uma verdadeira nova censura, hoje decorrente de factores menos obviamente
políticos e mais difusos mas nem por isso menos concretos. A indiferença manifestada perante os escritos de Silva
Carvalho só pode explicar-se pelo conformismo que governa o jornalismo
literário e também pela decomposição que nele lavra. Não é seguramente porque
as obras deste autor sejam desprovidas de interesse, visto a actividade de
Silva Carvalho se mostrar fecunda, expressiva e vivificadora –
independentemente de concordarmos ou não com ele. O seu último livro publicado é uma colectânea de ensaios e de
traduções de poetas norte-americanos contemporâneos, prestando-se, graças às
explicitações que carreia, a uma exposição mais clara do CASO SILVA CARVALHO
nos seus dois aspectos mais notórios: o de autor ignorado e o de escrevedor
com uma prática de ideias próprias – afirmando-se, nesta prática, a arrepio
do consenso estabelecido entre nós a propósito da arte poética. Na esteira do post-modernismo
norte-americano, que se expande a partir dos anos 60 e no qual Silva Carvalho
se reconhece, este autor foi introduzindo na sua actividade elementos
constituintes tendentes a pôr em causa o estatuto corrente da arte literária
e as ideias que o sustêm. Para começar, a própria noção de arte. Insistindo no carácter autoformador do texto poemático, nas suas características
pessoais e contingentes, elabora-o como algo de confessional e reflexivo, e
sobretudo de espontâneo e sincero, retirando-lhe a armação oficinal e a aura
metafísica. O poema só se escreve uma vez, não sendo a sua imediaticidade alterável, visto tratar-se de uma
expressão directa da vida, da experiência vivida na sua qualidade de
testemunho circunstancial preciso. Por isso os poemas de Silva Carvalho
surgem sempre datados, com dia, mês e ano, sendo muitos deles acompanhados de
notações imediatas e biográficas nas quais o autor se debruça reflexivamente
sobre o que acabou de escrever, mostrando nisso uma perplexidade atenta. Depois, e correlativamente, Silva Carvalho defende o que chama
uma estética da imperfeição, assente na precariedade do pensamento e, no seu
modo operatório, alicerçada numa tautologia (remetendo para a
imprevisibilidade), numa assunção do parêntesis (abertura de espaços) e num
reconhecimento do carácter babélico ou meândrico das línguas agindo sobre a
língua em operação de descoberta, sendo o carácter ocasional do escrito o seu
suporte. O corolário desta experiência é aquilo a que Silva Carvalho
chama uma poesia sem poetas, remetendo-nos para a divisa estratégica de Lautréamont segundo a qual “a poesia deve ser feita por
todos, e não por um” – ou seja, dixit Silva
Carvalho, “feita pelos homens e pelas mulheres finalmente despidos de
quaisquer atributos que os possam distinguir do resto da tribo, mas dados à fascinação
das línguas como lugares onde se desenvolve um permanente diálogo, por elas
estabelecido, com a realidade, dando origem a falas e a dizeres,
e à prática da escrita enquanto ‘autovalidação’ e
‘autocriação’ (…)(A Linguagem Porética,
p.43). Os textos de Silva Carvalho, cuja pulsão deriva de uma
reflexão sobre o homem individual no tempo, apresentam-se eivados de acção
filosófica, constituindo um filosofar permanente do escrevedor em busca do
seu lugar nas circunstâncias que procuram delimitá-lo – e, no seu caso, que o
isolam do convívio humano ao inscrever-se numa loucura, a da
interrogação que rejeita o adquirido. Uma das questões centrais que o nosso
autor incisivamente aborda, em especial na sua análise da poesia
contemporânea em Portugal, é justamente o inaugural logocentrismo
de Platão, a metafísica por este instaurada acerca de um centro e de uma
origem de cuja matriz tudo decorre e que tudo modela, opondo-lhe, apoiando-se
sobretudo em Heidegger, “a necessidade de se acabar de uma vez por todas com
a opressão inerente a qualquer ideia de forma, de pureza, de bem feito, que
subjazem à do domínio (de uma técnica capaz de assumir e ganhar o papel de arte)” (Idibem, p.37). As
passagens sobre a poesia de Eugénio de Andrade, Herberto Helder
e Ramos Rosa constituem sem dúvida uma reflexão muito séria, embora
problemática, ao caracterizá-los como “poetas pós-simbolistas retardados”, ou
seja, pré-modernistas, sublinhando o papel do metaforismo exacerbado como
expressão típica do poeta impessoal, deus ex machina, criador duma realidade instaurada no
texto. Se remetermos isto para a recepção desta criticada escrita,
veremos que Silva Carvalho toca numa questão muito característica da poesia
em Portugal, sobretudo se tivermos em mente os epígonos daqueles três
autores, porque a verborreia metafórica que os epígonos do lirismo produzem,
com desconcertante facilidade, descamba no puro artifício, incorpóreo e
doentio, duma linguagem sem significação a não ser a de um belo
estetizante e amiúde cabotino, que por sua vez é expressão de uma falta de
pensamento, de uma ausência de personalidade. Ao peso desmesurado do metaforismo e da estética que este
mantém, Silva Carvalho opõe, longamente analisado, aquele que caracteriza
como o primeiro poeta post-modernista português,
Jorge de Sena, a que dedica dois ensaios neste livro, detectando na sua obra
poética “a temporalidade que remete para uma visão pré-socrática anterior ao logocentrismo instaurado por Platão” (p.29). Opondo, na
poesia seniana a noção de representação à de
“processo testemunhal” (visto este poeta rejeitar uma arte do parecer).
Silva Carvalho vai descobrir no prefácio de 1960 de Jorge de Sena à sua Poesia
I um manancial teorético, e nomeadamente a diferenciação por ele encetada
perante a sensibilidade do modernismo e o consequente surgimento de uma nova
apreensão, a post-moderna: “Há muito de orgulho
desmedido nesse ‘fingimento’, que contrasta, quanto a mim, com a humildade
expectante, a atenção discreta, a disponibilidade vigilante, com que, dando
de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca, como
do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso maternal cuidado.” É
ainda neste prefácio destacado por Silva Carvalho que Sena escreve: “nunca
soube ou nunca quis corrigir um verso ou reestruturar um poema, após o
momentâneo acto de os registar ou de lutar pela chegada deles às palavras ou
das palavras a eles.” Para além de revelar assim as suas afinidades, Silva
Carvalho projecta sobre Jorge de Sena uma nova luz, a de inaugurador em
Portugal de uma corrente que só muito depois se torna conhecida, o post-modernismo de génese norte-americana. Nesta nota apenas pretendo chamar à atenção para a importância
de um autor silenciado através dos processos nossos contemporâneos de
censura. Deixo para outra altura a discussão da poesia de Silva
Carvalho (termos que ele não subscreve) – onde para já apenas poderei denotar
uma paradoxal dificuldade, resultante por certo da sua novidade mas sobretudo
do seu processo, que curiosamente assenta num diálogo com o leitor… Júlio
Henriques in Revista Utopia, 5 de
1977 Silva
Carvalho, A linguagem Porética,
Brasília Editora, Porto, 1996, 160 pp. Além de Jorge de Sena, este livro
contém textos sobre Hayden Carruth
e Robert Lowell, bem como traduções notáveis de
poemas de Wallace Stevens, William Bronk, Lowell e Carruth, autores que Silva Carvalho conhece bem. |
Palingenesia ou
o Estado e o Processo do Romance Silva Carvalho Lisboa, Fenda, 1999 Palingenesia
ou o Estado e o Processo do Romance de Silva Carvalho Silva
Carvalho retrata, em Palingenesia ou o Estado e
o Processo do Romance, os anos que passou em Paris como exilado fugido à
guerra colonial. A situação precária em que viveu naquela cidade tem um
impacto tão forte na sua forma de encarar a vida, que chega a afirmar:
«Qualquer coisa de muito grave se passou comigo desde que cheguei a Paris,
ou, com os primeiros anos da estadia, perdi qualquer coisa, uma infância, uma
capacidade para me extasiar com a beleza do mundo» (p. 106). Visceralmente
poeta, Silva Carvalho, tenta com este livro o campo da ficção através de uma
autobiografia romanceada. Parecerá um contra-senso tomar o género
autobiográfico como ficção e considerá-lo, como é o caso, um romance.
Realmente o autor retrata-se a si próprio numa
determinada fase da vida. Curiosamente ao longo do livro não aparece nunca o
termo autobiografia. Antes o termo romance e, quando muito, o
termo memórias. A memória, aliás, tem um papel preponderante, uma vez
que o autor relata, no momento em que escreve, acontecimentos de há vinte
anos atrás. O
livro está dividido em capítulos a que Silva Carvalho dá o título de cenas.
De teatro, de um filme? Cremos remeterem mais para o cinema, uma vez que o
narrador descreve numa das cenas o modo como se tornou por acidente actor de
um filme. A vida em retrospectiva, quebradiça e fragmentária, perpassa ao longa das páginas, como um filme. Difícil
portanto, definir o género a que este livro pertence. Autobiografia por um
lado porque é o autor a falar de si próprio, remetendo para o real da sua
vida como homem e escritor, com referências, por exemplo, aos livros já
publicados ou já escritos, ou remetendo para factos da sua vida real. Em
certa medida, é um ensaio sobre ideias, quer filosóficas, quer literárias,
onde o autor questiona a problemática da vida e da morte, ou tece comentários
acerca do cânon literário ou sobre a escrita do romance. É um romance no
sentido de que, toda a realidade reescrita, remete
para a ficção, uma vez que a linha que separa o que realmente aconteceu do
escrito é muito ténue. O próprio narrador o refere: «as palavras, sendo as
mesmas, tecem figurações imprevisíveis quando expostas ao acaso da memória e
ao arbítrio do tempo» (p. 5).
É
o livro uma extensa reflexão sobre o que é ser-se escritor de língua
portuguesa, onde se referem as vicissitudes, os desaires, a luta pela
sobrevivência literária num país onde não há leitores e onde nas letras vence
muitas vezes a mediocridade. A intenção deste livro,
confessa o autor, era a de chamar a atenção sobre a sua obra poética (cfr. p. 143). A
problemática do tempo e do espaço subjaz em todo o livro. Por um lado Paris no
início dos anos 70, por outro a recordação cada vez mais nebulosa de
Portugal. Sendo uma obra que remete para a memória e sendo o passado
depositário da mesma ou, pelo contrário, sendo a memória a depositária
daquele, o autor vê-se confrontado com o problema da impossibilidade da
recuperação do acontecido. «Diante do passado», diz Silva Carvalho,
«resta-nos a idealização. A recriação de vidas que foram sem nunca serem as
vidas que lhes queremos atribuir ou impingir» (p. 80). Toda a tentativa de
recuperação é uma recriação.
O
regresso, o retorno ao momento e lugar onde fomos felizes é um desejo
igualmente impossível. Impossível porque esse momento e esse lugar nunca
existiram: «Regressar, regressar é a íntima injunção, mas onde? E não haver
um onde em nenhuma parte do mundo, em nenhum lugar da terra, é como sentir-me
novamente a mais (no menos que sou e sinto) e sem solução» (p. 107). Sendo
este livro uma reflexão sobre a arte do romance, para onde o subtítulo
remete, são frequentes as pausas narrativas em que o escritor aproveita para
tecer algumas considerações sobre a ficção, a realidade, a honestidade e a
autenticidade literárias. Diz o autor que a única ficção que o atrai é a
realidade (cf. p. 116). Essa mesma realidade tem-se ele esforçado por apreender
através dos vários livros de poesia que vai publicando. Entende, no entanto,
que «escrever-se romance não releva de nenhuma autenticidade» (p. 130).
Talvez porque na escrita de um romance tem de haver «uma certa cegueira, uma
certa ingenuidade, uma desejável estupidez. Só assim se arquitectura uma
história» (p. 40). Chega a duvidar se aquilo que vai escrevendo ao longo
deste livro é realmente literatura. «Se é, confesso que não estou
interessado, nem na literatura nem em ser literato! Contar, é verdade,
concordo, mas o quê?» (p. 105). Palingenesia
é, como o dicionário indica, «o eterno retorno», «o suposto
regresso à vida depois da morte real ou aparente», o «renascimento». A
personagem principal, que nós sabemos ser o próprio Silva Carvalho, era uma
espécie de morto-vivo a deambular pelas ruas de Paris entre 1969 e 1975.
Perdida a pátria, longe dos afectos familiares, incapaz de trabalhar
para o sustento, pois o trabalho braçal, a que estavam condenados os
emigrantes, era-lhe dolorosamente repulsivo, deixava-se morrer, chegando
mesmo a programar um suicídio físico. Ensaiou-o quando um dia foi convidado
por um vizinho a participar como actor num pequeno filme, em cuja última cena
a personagem que ele encarnava se envenenava. Mas a saída não estava aí. A
saída estava na arte dos afectos, que afinal se encontra latente em cada um
de nós e só necessita de ser despoletada. Palingenesia
patenteia-se, em resumo, como uma forma de o seu autor se assumir como Homo
Narratorius. É recriando pela escrita o mundo e
a memória acerca dele que o escritor se conhece a si próprio. «Em certos
momentos», confessa, «descobri quem nunca sendo eu fora sem o saber» (p.
240). José
Leon Machado, in Projecto Vercial Junho
de 1999 |
Silva Carvalho Palingenesia Fenda
, 1999 INSINUANDO
O REGRESSO À VIDA Ocorre
dizer a propósito de "Palingenesia Ou O Estado Do Romance" (Fenda
Edições), de Silva Carvalho, que preserva a "apetência de escrita"
(pág. 146) patente em toda a sua experimentação (situando-se entre o
"poético" e o "porético", cf.
"Nota de edição" a "Mais ou Menos"). Nessa perspectiva,
Silva Carvalho conjuga a parcimoniosa "fala da experiência"
"algures em Paris" (pág.s 171,5) com
"arrazoados da impotência teórica como especulativa" (pág. 15). Denegação
da literatura em que o sujeito especular constrói uma ficção processual, de
desmontagem, insinuando o "regresso à vida", ("outra
coisa" que não é ficção), que indicia "renovação,
regeneração", ou seja, "Palingenesia": "Isto é
literatura? Se é, confesso que não estou interessado, nem na literatura, nem
em ser literato!", "não é romance, é
história", "mas talvez isto que aqui se vive não seja literatura",
restrinjo-me ao essencial do acontecido", "escrever não pode
coincidir com essa estúpida ideia ou noção de um inquestionável ainda
escrever bem.", pág.s
105, 163, 127, 12, 14. Mas também visualização arbitrária de
"cenas" ("escrevo frases deste tipo que não nascem em mim nem
me são genuínas" que são pretexto ("a intenção deste livro era
chamar a atenção sobre a minha obra", pág. 143) que envolve o autor
contra a crítica concentracionária. Apócrifa autobiografia ou uma postura calculada,
confessional (Rousseau)? José-Emílio
Nelson in Leituras Jornal
de Notícias, 15 de Julho de 1999 |
75 Sonetos, Silva Carvalho
Lisboa: Solcris. 1985 Circular Não
há dúvida que o soneto é uma forma poética venturosa, talvez aquela que, para
além da quadra popular, é há mais tempo cultivada por mais pessoas. Foram os
clássicos, os românticos, os modernos; uns fizeram-no bem, outros mal. E os
que o fizeram bem nem sempre foram aqueles que seguiram à letra as regras
primitivas. Porque o soneto, mais do que um sistema cristalizado, tem
demonstrado ser também uma forma extremamente versátil, ainda que de tal
maneira difícil que só muito poucos poetas a conseguem utilizar de um modo
adequado, não cansativo, rentável. É
este o que me parece ser o caso de Silva Carvalho: nos sonetos que aqui nos
apresenta, não respeita a estrutura do soneto clássico (em termos estróficos
e silábicos); mas, por outro lado, adopta um esquema rimático tradicional,
mesmo que para isso tenha tido que rebuscar - habilidosamente - no seu
depósito de palavras incomuns. Ou seja, os sonetos que nos dá são jogos de
palavras que dão a volta, sem a trair, à forma clássica - e, por trás destes
jogos, outros existem e que os sustentam: os jogos de ideias; e, aqui, o
poeta é habilidoso também.
Dividindo
o livro em três partes («Logos, «Moïra
e «Aleteia) e dedicando-o a Nietzche, Heidegger e
ao nosso referente comum que são os Gregos, Silva Carvalho oferece-nos um
curioso percurso de introspecção enquadrado pela busca do conhecimento, seja
ele objectivo (Logos) ou transcendente, como o que regula o destino e a
vontade do homem (e que poderá ser representado pelo conceito de «Moïra).
Poesia
filosófica talvez, difícil com certeza, oportuna sem dúvida. Luís
Fagundes Duarte, in Jornal de Letras de 24 de Março de 1986 |
75 Sonetos Silva Carvalho, Solcris Com
uma dedicatória a Nietzsche, Heidegger e aos gregos, abre-se este conjunto
poético de Silva Carvalho.
Um
acutilante reflectir do Eu na sua relação com o envolvente é o primeiro grupo
de poemas que aparecem com o título de «Logos». E esta razão, «exacta medida»
tão procurada pelos nossos criadores gregos, idealiza-a o autor num
texto. Passo a citar: «Um texto onde me lavasse da impureza mental,/ com
signos tão próximos da terra excruciante/ que fosse possível apalpá-los num
gesto tal/ que o texto se transformasse em vida hiante./ Um texto tão simples
como a complexa natureza,/ sulcado de rios, de verdes vegetais, de ardência/
insuflada pelo sol quando a verdadeira pobreza/ significa, não a privação,
mas conquista, ausência./ Um texto onde se descobrisse a lei e a quididade:
reflexo, não de um mim que
se sujou de mundo,/ mas daquele que sou quando a nudez da idade/ me abre ao
cosmos dando-me um brilho fecundo./ Um texto tão natural que fosse
paradigmático:/ exacta medida num destino enigmático.» A
escrita surge como uma forma de catarse: «(...,
vence o soneto a intemperança,» Aquela que o autor observa quando diz: «Vejo,
no ecrã incendiado da televisão perversa,/ a última notícia, rosto de
criança, mãe chorosa./ Grassa a guerrilha, farrapos e corpos, dispersa/ dor
materializada pela história torva, ominosa./ Mas sinto?/ Tão longe a
catástrofe! Quase ficção. Dor, vê-se quanto nos
abisma a condição do humano plinto./ Carne para a voragem do poder, eis o que
somos./ Títeres escravos, cúmplices laços, secos gomos.» Pensa-se
o autor. Sobre si e sobre os outros recaem a ternura e a raiva. A compreensão
dos seus fracassos e a denúncia da sua futilidade. Passo a citar: «Memória! Pena estes corpos não
produzirem nus./ Ei-los corrompidos pela história. Atordoado,/ visiono a
perda. Não merecem o sol, quanta luz/ cai sobre a terra. Procuram apenas o
bronzeado.» Ou: «Não é conquista. Nem derrota. É o tempo ovante/
transformando o corpo e a alma a seu talante!» A
lucidez escorre destes poemas de pendor filosofante. De um modo inquietante.
Daí o autor afirmar: «Quisera viver da pedra o mutismo, a adiaforia./
Invejo a estupidez. Olhar para o mundo, e nada./ Nem uma emoção, nem um
sobressalto: calma fria/ onde pudesse esquadrinhar a ironia, camuflada.» Não
me alongarei mais em considerandos acerca destes poemas agrupados sob o
título de «Logos». Os outros dois grupos poéticos («Moĩra» e «Aletéia» que também fazem parte destes «75 Sonetos»
exigem-me a sua atenção. Assim,
detenhamo-nos nos poemas de « Moĩra »... «Terrível
dizê-lo, mas as palavras exigem guerra./ Não há paz no seio do poema, mas
cartas, do jogo/ onde a ausência vem, aparece. O corpo sabe, berra/
imprecações terrenas, revolta-se perante o fogo.», afirma-se
e, mais uma vez, surge a palavra como a única e possível apreensão da vida.
De um existir em que o autor se reconhece como o criador de impossíveis.
Frustre viagem de um cosmos equilibrado em antagonismos. Donde o dizer: «Bela
rapariga que vens à janela, quisera, quisera.../ Não
é só frustração. Nem realmente desejo./ É outra
coisa, é o tempo, é a morte que oblitera/ as transformações no oco, no
recesso excruciante!»
São
agressivos os versos de Silva Carvalho pela nudez com que nos lançam
intransponíveis experiências. A do Eu confrontado com a constante fugacidade
do manifesto. O pleno de luz e o asfixiamento
sórdido. Contudo, no conjunto poético de «Aletéia»,
escreve: «Exijo mais que um leitor. Compreendam-me: passar sílaba a sílaba
pela carne do sonho significa/ mais que devolver ao texto a sua origem.
Significa/ sentir, pela primeira vez, a necessidade de amar.» Perante
tal confissão do Eu, só me resta desejar que o leitor se sinta atraído por
esta escrita. Que a ame. Isto é: que o desejo do poeta não ecoe no silêncio
da vossa indiferença. Ana
Paula Portugal in Ler/Escrever Diário
de Lisboa em 14. Maio.1987 |
Silva Carvalho 75 Sonetos, Solcris. 92
páginas Não
desconfie o leitor: é poesia a sério, não obstante a brancura do título geral,
decerto provocatório pela negativa. A
estante, in Jornal de Letras de 3 de Março de 1986 |
Silva Carvalho Ao Acaso, Porto, Brasília
Editora PAIXÕES Meditação
sobre «Ao Acaso» de Silva Carvalho «Penso,
eis-me num beco sem saída» Ao
acaso, pois. «Ao acaso do coração», como acentua o poeta. Na indeterminação
de tudo, eis o homem, o homem que somos nós, ora numa situação ora noutra
situação, agora num lugar, noutro lugar mais tarde. Mas que sentido o do
homem no tempo...? Silva Carvalho: «Nenhum sentido, mas a grave necessidade/
em permanecer para sempre sem idade». Quem se der ao cuidado de ler as
trezentas oitavas de «Ao Acaso» (todas elas metrificadas e rimadas, o que
testemunha labor e busca do homem em sua medida e canto) ir-se-á identificando
com os muitos passos do ente humano pelo espaço que o circunscreve. Acredite
o leitor de poesia que vale a pena o trajecto por estes dois mil e
quatrocentos versos. Dir-se-á: «para ler duma assentada...?» Para que se
medite oitava a oitava, para que das partes se ascenda ao todo. Afiancemos,
para encurtar razões introdutórias, que tal trajecto é um exercício
verdadeiramente espiritual - e que só os muito distraídos (aqueles que o
senso comum designa por felizes) não entenderão a profundidade dessa errância
multiforme que percorre o livro de Silva Carvalho. E lamentável será, que
muitas são as perguntas que por aqui definem a condição humana... Assim
temos que (...) «um homem distraído/ entre o quotidiano pífio e a viagem»
sempre, no doloroso tempo oportuno acabará por perguntar: «Onde está? Quem é?
De onde vem?» E a resposta, trágica, surge: «Assim/ recomeça, o brilho, no
além, a causa certa.» Ainda na mesma oitava (a III), a ilação que o
pensamento extrai para seu próprio esmagamento: «Desfeito pelo desleixo da
loucura, enfim/ solitário, de uma solidão breve e esperta/ onde pode respirar
a eclosão do fim,/ ei-lo, isento e soberano quando acerta/ sem temor na
palavra-chave: distância/ do mundo ao ser, insuperável arrogância». Ora é
precisamente o facto de o homem se encontrar num ponto e nas perguntas que
formula tentar abarcar um ponto para além de si (ou melhor dizendo: para além
das suas possibilidades) que lhe confere o estatuto de ser o único ser da
criação capaz (mas que capacidade) de inteligir a
noção de beco sem saída. Todos os outros seres vivos cumprem uma geometria
simples. Que se olhe para o gato doméstico: do círculo de sol, onde
dormitava, ergueu-se e foi-se em linha recta até aos restos que se lhe deu
para almoço. Só o homem (um certo homem), mesmo quando almoça e o sangue se
lhe alegra com um pouco de vinho, sabe sempre que se encontra enclausurado. O
cogito cartesiano («Penso, logo existo») será por
ele enunciado noutros termos: «Penso, eis-me num beco sem saída». O
enclausuramento, na acepção trágica e nobre do termo, é próprio do homem que
pensa. O homem que pensa sabe que não sabe. Daí Silva Carvalho escrever, na
oitava LVI: «Sente o pão diário como um antigo ralho/ quando ser criança
significava não saber.» Mais ainda (retrocedendo à oitava V): «Sente medo.
Ingénuo sem núcleo de criança,/ avança, um olhar exfoliado, um regaço ledo,/
a incapacidade compondo-se de sol, dança/ onde espera reconhecer a verdade
tão cedo/ como uma aurora perdida na esperança./ Mas tudo lhe é adverso. O
corpo diz medo,/ o espírito é dicotómico, a alma insegura/ ao ponto de não
saber onde é a loucura.» Terrível: o que é, na verdade, o racionalismo? Muito
simples é o problema que enclausura o homem (e, porque simples, doloroso como
um todo, que não admite uma alteridade fonética, com verbo, com fala): para
além do cogito cartesiano («Penso, logo existo»),
algo fora de nós, embora não pensando, também existe. Daí a solidão que é o
oxigénio do homem, solidão bem expressa na oitava XI: «Ninguém perto. Vizinhos,
algures, a realidade/ recolhe-se em si como nó filosófico. Isento,/ percorre
e deambula e ciranda a necessidade/ como alto mandatário de um espanto
lento./ Que é viver? Que é morrer? Nem a cidade/ governa a desmedida quando
descobre alento./ Resta-lhe a ambiguidade, e algum consolo/ no que desfaz
severamente. Ninguém é tolo.»
Obviamente
que o homem (mesmo aquele que pensa) se refugia no quotidiano. Mas este
quotidiano, fazendo bem as contas, surge-lhe independente, afastado de si, como
se as coisas acontecessem a uma grande distância, com uma vida própria,
estranha, nada tendo a ver com quem as contempla... Muitas dessas coisas
«coisificam-se», por assim dizer, em recordações, em que o único resquício de
vida, de movimento, são simples fenómenos da Natureza que, existindo, não
pensam, numa completa indiferença para com o cogito subjectivista cartesiano.
Atente-se, por exemplo, em mais uma oitava, a CLXXXIV, que desta maneira se
expande: «Jogam à bola num campo improvisado. O asfalto/ deve roer-lhes nos
pés adolescentes, a baliza/ são dois calhaus roubados ao pavimento alto./
Nunca foi amante de jogos, paradoxalmente. Pisa/ a recordação desses anos,
sente como um assalto/ a sua inacção filosófica, viver era ver a brisa/ que
passava, o sol que subia e descia, viver/ era sobretudo fingir que a vida
podia aparecer.» Face a essa distância de todas as coisas (ou até só de
algumas poucas coisas, que é o que normalmente acontece ao homem, e aqui
reside a sua tragédia enfrentando pequenas parcelas que não se integram na
sua totalidade), eis que uma pergunta se lhe põe à flor da sensibilidade.
Qual...? Sentir
quem é. Leia-se a oitava CCXVIII: «Sentir quem é. Um minuto, um segundo, um
lapso / onde o tempo soubesse cingir-se à inclemência / do infinito. Que
encontra? Apenas o olhar relapso / daqueles que, como ele, não sabem, na
contingência,/ o que fazer da vida. Conquistá-la? Um só ilapso, / mesmo
profano, mesmo alucinante, eis a urgência / da sua alma opiante
quando o corpo se destrói. / Há quem o compreenda, mas a língua age e dói.» Demoremo-nos
no seguinte ponto: conquistar a vida. Mas quem conquista a vida (e agora
independentemente da carga dorida da poesia de Silva Carvalho), conquista o
quê...? Por entre as coisas muitas do mundo, sempre o beco sem saída nos
surge. Por paradoxal que seja, em momentos de grande compenetração, ansiamos
mais pela animalidade (num sentido uno, ontológico) do que pelo pensamento
que, tido como luz, tudo desmultiplica e nos confunde. Que por um só instante
nos limitássemos a ser o que não pensa! Escreve Silva Carvalho em CCXVII:
«Uma hora que fosse, para sentir a animalidade. / Um
regresso sem fronteiras, um retomo casual / como se
ir e vir demandassem uma liberdade / capaz de luz, de nitescência
civilizacional. / Tudo tão morto, até a inteligência da idade, / tudo tão
poluído como a sensibilidade exicial. / A tautologia grávida de deveres e de
revulsão. / Que dédalo para se sair, que caminho para o pão?» Mesmo que
consigamos sair do dédalo e compremos o pão, a verdade é que o pão é um
objecto exterior a nós, um ponto a que temos de ir mecanicamente, sem
fonética, sem verbo, sem qualquer espécie de alteridade. É um objecto que nos
desafia: pensamo-lo (porque cartesianamente
existimos), mas ele, o pão, embora existindo, não pensa. Logo: não há uma
intersubjectividade entre nós e aquilo que nos rodeia. Que não se tome tal
asserção por um dislate: é nesta dicotomia, nesta separação, nesta distância,
que reside todo o drama da existência humana. Por agora ainda não, tão
baralhados ainda nos sentimos: mas um dia virá em que estas coisas serão
devidamente tomadas em conta.
Poderíamos
dizer (e que Silva Carvalho nos permita a breve dissertação seguinte) que o
drama do homem se reveste de duas componentes: o côncavo e o convexo.
Explicitando, passemos para a música possível que o raciocínio nos permite.
Como...? Encaremos o peixe no aquário. Que silêncio! No silêncio da casa, ele
é ainda mais silencioso: só anda aos círculos, muito junto ao vidro, e outras
vezes fica-se parado, sem um estremecer, apoiado em coisa nenhuma da água.
Seria bom tê-lo entre as mãos, sentir-lhe a humidade, o movimento tocado
pelas impressões digitais. Impossível, no entanto. As coisas que se apetecem
nunca nos dão a posse de si mesmas. E é precisamente por isso que as
desejamos. Ora o peixe vermelho na concavidade do aquário só nos permite a
convexidade do aquário. Se o possuirmos, se nos atrevermos ao segredo
côncavo, só nos restará a superfície (sem nada) do convexo. O peixe vermelho
será sempre o símbolo da água que só na concavidade reside e nunca revestirá
a convexidade. O peixe está para o côncavo como o nosso desejo de o ter está
para o convexo. Logo: o contacto entre as nossas mãos e o peixe é uma
impossibilidade mútua. Ou por outras palavras: uma impossibilidade
ético-física. Só a idealização, abstraindo de toda a materialidade, nos
poderá ofertar o peixe vermelho circulando na convexidade do aquário. Logo:
teríamos a água no exterior envolvendo o aquário, permitindo o peixe na
convexidade deste. E nós, na concavidade por força da idealização, observando
o peixe sem morrermos afogados... Então, sim: a nossa mão sairia do côncavo e
tomaria o peixe no convexo. Onduladamente, teríamos
a alteridade do todo: o homem com o peixe na mão, o peixe na mão do homem. Mas
eis termina a impossível música do raciocínio. De novo temos o homem com (CXXI: «o nariz espetado no lençol. Os óculos tira, /
coloca-os sobre a mesinha-de-cabeceira. / Onde se propala a realidade? Nada
que fira / tanto como saber a perspectiva, a fogueira / onde ardem as bitolas
e as medidas. Respira / uma vertigem, um segundo de mundo, a peneira / onde
quem é navega e adrega e já resvala. / Que canção mussita, que filosofia
cala?» De novo o beco sem saída se impõe - e de tal sorte que, num encolher
de ombros, encarando a mulher, o ser pai, a música, os comprimidos, o
suicídio, milhentas coisas mais, entra então o homem num compromisso último:
(CCC «... Dirá boa-noite, um sorriso / nos lábios. Evoluirá entre as gentes,
subtileza / do mistério onde o corpo fingirá um juízo. / Conversará com os
colegas, dará as aulas, beleza / das possibilidades humanas. Responderá ao
aviso / do destino, patético e lúgubre, pleno de grandeza. / Sente que algo o
desfigura, que a dor o corta. / Não importa, lentamente, seguro, fecha a
porta.» «Penso,
logo existo?» - interroga-se o homem nobremente triste. E sobre ele chama a
porta, algo que não pensa mas que existe. Última alteridade que, final lhe
assiste...? Pedro
Alvim, in Ler/Escrever Diário
de Lisboa de 24 de Março de 1987. |
Silva Carvalho Ao Acaso, Porto, Brasília
Editora Elucidação
procurada e perdida AO ACASO SILVA CARVALHO BRASÍLIA
EDITORA-PORTO I. A POESIA DO MOMENTO Não
é fácil catalogar a poesia portuguesa do momento. Algumas tendências
no sentido da contenção formal que subordina conteúdos a configurações não
verosímeis; outras, polarizam o discursivo
filosófico (metatexto), na referência, sem
equívocos, a uma subjectividade no quotidiano. Algum discurso artificioso deu
lugar a discursivo conceptual, e vice-versa. Contraste não definitivo. Uma
recente recolha efectuada pela revista Poesia (nº 26) ilustra para a
poesia espanhola o que deveria ser demonstrado para a poesia portuguesa:
nenhuma «nova sentimentalidade». II.
AO ACASO Ao
Acaso, de Silva Carvalho, exemplo individualizado de uma tipificação
da vida através de um romancear da poesia em enredos de conceitos que
sustentam o texto. Se
me é permitido retirar frases do contexto e reorganizá-las na sua revelação
mais secreta, reescreveria: «Tudo por dizer» (pág. 11), mas «A gramática
enlouquece-o na filigrana boçal» (pág. 18), daí uma «irrupção/de falas onde o
discurso jaz quase adstrito/à materialidade tosca e crua da execração», onde
«ficar, permanecer na loucura como teorema/de uma linguagem capaz de elucidar
o poema.» (pág. 18). Elucidação
procurada e perdida. Incapacidade da poesia dar a resposta: «A poesia
selvagem» (pág. 77) testemunha o abismo da demência («Literatura/e
a outra face, porque aqui age só a loucura» (pág. 103); «gramática
endoidecida» (pág. 93); etc., quer dizer, uma sobredeterminação de questionar
a razão do texto, a relação (e afinidade) entre a pulsão textual e outras
(p. ex. a erótica), em passagens que caracterizam o discurso no âmago da
intencionalidade da problematização, numa irracionalidade. Em
certo sentido, é o conflito da «consciência» determinada pelo «ser social»
(Raymond Williams) que impõe a truculência do seu texto. Uma retórica febril
recorrendo à banalidade e à ornamentação mais inesperada («Essências e ipseidades e solipsismos são/esplêndidos
esgares para a vacuidade imoral.» pág. 44), insistindo numa desobediência
(irónica) a esvaecidas preferências que tantas vezes a rima impõe. Abstracto,
descritivo, influenciado pelo detalhe do seu próprio comportamento, abordando
as contingências sem disciplina, com exasperação, particularidades de exaltação
de júbilos ínfimos de insatisfação, do caos, ao acaso da vida. José
Emílio-Nelson in finalmente domingo! Comércio
do Porto em 15. Fevereiro.1987 |
Ao Acaso Silva Carvalho Brasília
Editora – Porto Oitavas
que sem serem à maneira de Camões nos parecem estar entre a
poesia e a vida numa rítmica repercussão das palpitações cardíacas. Uma
exposição quase espontânea e natural do quotidiano, do indivíduo na realidade
de essenciais vivências ou, pelo menos, do seu eco: «Ao
acaso do coração, um homem distraído entre o quotidiano pífio e a viagem,
ei-lo, sem enredo nem paradeiro, saído da matéria dos dias como uma passagem
pelo sonho, simulacro e sibilo, nascido quando a hora se assemelha à
clivagem. Nenhum sentido, mas a grave necessidade em permanecer, para sempre,
sem idade.» O
Diário em 25. Abril.1987
|
Silva Carvalho Setembro Solcris Ocasionalidades SETEMBRO SILVA CARVALHO EDIÇÕES DE AUTOR Os
textos datados (de 26/8/83 a 25/9/83) de SETEMBRO, Silva Carvalho, não cessam
de diagnosticarem (no mesmo sentido em que Deleuze diz: «Espinosa diagnostica
no mundo...») as causalidades de uma biografia. Pensamentos fortuitos,
equívocos comuns, temperamentos, procedimentos da vontade, vivência privada. A
descrição descentra a insuficiência do texto e anuncia o modo de acesso
(mediação), harmonização esclarecedora e coincidente entre leitores:
(p. É o que é) Reproduzi
algumas linhas somente para melhor salientar o valor do procedimento
adoptado: utiliza argumentos (i.e., máximas) de antecipação pertinente e
percebe-se que prosseguem essa ficção dominante. Ficção de associações
encorajadas por uma euforia confessional que desvenda, ao acaso, as
arbitrariedades, que recorre a uma memória das circunstâncias, uma privaticidade. SENTIDO DISSIMULADO Apego
à alocução que assimila uma experiência («a merecer.
O pensamento sempre me atraiu./ Não pela verdade. Mas pela possibilidade».,
pág.14) como ponto de partida para «possibilidades» textuais. Expediente ou
simulação, o texto é uma construção excessiva («O
texto não fica concluído, mesmo depois de acabado./ Nada lhe falta, pelo
contrário, tem a mais. É esse a mais/ que me perturba profundamente. Porque
deveria haver/ um lugar para tudo./ À poesia o que é da poesia.», pág 63).
Colocação
da «vida» através de implicações de inexistência estética que falham os
poemas (p. Presságios), e que dão o sentido dissimulado (cf.p. Sem resposta) e reencontrado: «Setembro mergulha-me
na luz da nostalgia». pág. 37; «Hoje, nem sequer o
desejo, a atracção da poesia»., pág. 51. Significará que o texto elaborou (na
sua incapacidade) um dizer de intersecções? Alternância que
subentende Pessoa noutros argumentativos trechos, mas que assume com outra
precisão especulativa um plano de significação coerente. E
ainda elucidação (enquanto biografia) que confere um particular significado à
referência Holderlin/interpretação de Heidegger (no
p. Que chato!), ou seja, poesia é pensamento fiel (Heidegger),
e em Silva Carvalho, texto de ocasionalidades. José
Emílio-Nelson in finalmente domingo! Comércio
do Porto em 6. Setembro.1987 |
Da Estupidez Silva Carvalho Brasília
Editora - Porto IMPOSIÇÃO
DE UMA AUTOBIOGRAFIA Sobre
«Da Estupidez» de Silva Carvalho Há
no livro DA ESTUPIDEZ (de Silva Carvalho, Brasília Editora - Porto) uma
legendação ao texto poético, a negação de um espaço da impessoalidade, e a
imposição de uma autobiografia. Silva
Carvalho ambiciona esbater «A perplexidade comovida de quem se sente ávido»
pela anulação contida noutro verso do mesmo poema da pág. 25: «Mas o que
acontece nega a Iíngua do possível» Por isso esse
sentido do inacabado justifica que o A. se sobreponha ao texto e o alinhave
(pág. 68), o anote do infatigável, de resíduos diarísticos. O A. fala
ao leitor como se o tivesse à mesa do café, com comovedora confissão (p. ex.,
pág. 102 : «Gosto muito do poema A FALTA, já do
outro não poderei dizer o mesmo.», ou anteriormente : «Acabo de reler
todos os poemas deste livro e não sei o que dizer. Gostei de alguns deles,
nem me parece que o livro seja mau, mas estou incapaz de lhe encontrar uma
linha de força, uma directriz conceitual, o que quer que seja.» pág. 84
ou isto : «Apetece-me, estupidamente, agora, escrever uma linguagem quase inteiramente
denotativa (...) » pág. 44.) O
A. e o seu duplo jogam dentro dessa «euforia tresloucada» (pág. 102), o que
torna a leitura possível numa distanciação, estranhamente,
relativamente ao texto poético. Porque o tom da confidencialidade das notas
tenta interrogar o empastado de muitos trechos. Torna-os domésticos,
coisas da profissão (p. ex: Hoje, 17 de Dezembro,
cá me disponho a escrever este texto. depois de passada a tempestade
familiar, que me arrasou, e depois de ter feito algumas leituras mais ou
menos teóricas sobre o processo poético ... (pág.
34). Mas o contraste entre esses universos (da literatura, da vivência) a que
o leitor assiste é mais um conceito perspicaz da banalização, pastiche. de um
A. que recorre a formalizações complexas, esforçado júbilo lexical, e depois,
em rodapé, colectiviza a leitura, contribuindo com empenhamento para a
consciencialização do processo. Neste
contexto surpreendemos poemas (p. ex., INACABADO) que constituem excepção a
toda a minha anterior tentativa de explicação do presente livro: o poema
termina sem essa anotação circunstancial que o enquadra no quotidiano do A. Em
DA ESTUPIDEZ (p. ex., Finalmente, pág. 23) :
«A poesia é agora um grande enigma sem fundo», o poema sem construtivismos
desmistificadores ou outros. José
Emílio-Nelson in Jornal de Notícias de 28. Fevereiro. 1989 |
«Da Estupidez», de Silva Carvalho OS
RATOS ROERAM A LUA Luar
de Janeiro não tem parceiro. E como durante o mês que ora finda, frio até
mais não, o céu se mostrou quase sem nuvens, aquele astro deslumbrou
loucamente os nossos olhos. Então, para quem se levanta cedo, longe da
cidade, e tem de apanhar o comboio num cais distante (em Sintra, por
exemplo), a minutos do sol aparecer, ó maravilha das maravilhas! nunca a Lua foi uma circunferência tão perfeita! Não sei, amigos meus, se estão a vê-Ia: em palavras comum, comuns até mais não, a tipa era
mesmo um disco de prata, fixo num escuro não escuro, a fitar quem a fitava
sem uma única pestana a tremelicar... Enfim: só visto! Depois, com o correr
dos dias, começou a ser ratada pelos dentes do tempo, isto é, a
circunferência foi perdendo a sua perfeição. Já não era um disco - era um
pedaço de matéria branca com mordeduras à volta. Tal sucedia por razões muito
concretas das leis astronómicas que regem o Universo. Mas quem erguia os
olhos para o firmamento, e contemplava o astro assim lentamente comido,
tinha, ó se tinha!, outro pensamento: escondidos
ratos é que estavam a desfazer, a dentadas miudinhas, o desenho do que fora
uma tão nítida circunferência. Uma outra lógica, pois, se distendia pelo
cérebro de quem assistia a tão tremendo desastre - e a pergunta, íntima, era
só esta: “Onde os malditos ratos destas noites de Janeiro...?” Sem
dúvida que uma pergunta estúpida. Sucede, no entanto, que semelhante pergunta
se filia no conceito de estupidez proposto pelo poeta Silva Carvalho,
"desterrado" lá para as Américas na função de professor de Letras,
como muito bem se depreende do seu último livro, intitulado Da Estupidez, numa
edição portuense da Brasília Editora. Insere
o livro, na parte final, uma meditação designada por "Para uma Estética
da Estupidez", na qual se lê, preto no branco, logo no começo: «Há
anos a esta parte ando a matutar num livro mais ou menos teórico sobre a
estupidez, não a tão famigerada e essencial, por produtiva, estupidez humana,
mas aquela que estaria na base da minha aventura poética.» Justificando
essa sua intenção, Silva Carvalho acentua: «Elaborei na cabeça algumas
dezenas de teorias, vivi-as como um danado, entre o terror da congestão e o
sacrilégio da excitação intelectual, perdi-as na utopia da memória, a que a
civilização chama comummente de esquecimento. Numa época em que o biografismo
inexiste porque há muito deu o pio, atacado pelas cabeças mais pensantes do
século, tenho que confessar que não vejo outra maneira de chegar aos
fundamentos, porventura precários ou aparentes, da minha poesia, e do que
subjaz nela de estupidez, se não enveredar pela minha pessoa.» Para
o leitor que ignore a aventura poética de Silva Carvalho (o que, sem ofensa,
vulgarmente acontece), damos aqui os títulos da sua autoria: Suor do
Tédio, 1968; Les Trois
Âges (La Pensée Universelle, Paris, 1973); Memória do Presente (Brasília
Editora, 1977); Canções, 1978; Assim (Brasília Editora,
1979); Essas Vozes (Quatro Elementos Editores, 1983); Antes o
Paraíso (Black Sun
Editores, 1985); 75 Sonetos (Solcris, 1985); Ao Acaso (Brasília
Editora, 1986) ; Setembro (Solcris, 1987); e Da
Estupidez, a que nos estamos a referir. Uma obra poética, por
consequência, que já se estende (é fazer as contas) por onze livros, e que
(assim são as coisas) poucas referências tem
suscitado. Tudo branco como o disco da Lua. Daí a seguinte confissão de Silva
Carvalho, inserta na meditação "Para uma Estética da Estupidez": «Aos
quase 40 anos, não me conheço. Não sei quem sou. Sei que sou, que existo, que
vivo. Mas se me perguntarem certos traços da minha pessoa, acerca do que se
costuma dominar de personalidade, fico perplexo, sentindo um espanto inaudito
paralelo ao branco que se abre em minha frente.» E
um tanto dolorosamente: «Não é por acaso, nem por ironia, nem por bovina
aceitação ou impura bonomia que, quando minha mulher me diz que sou um chato,
ou um amigo, que fui cruel, em tal situação mais ou menos histórica, não me
defendo. Pelo contrário, é com uma redobrada satisfação que ouço esses
testemunhos da minha maneira de ser, como se, no fundo, eu sentisse ou
suspeitasse que, não tendo nenhuma maneira de ser, qualquer uma me seria boa
e desejável para cumprir devidamente meu papel de homem. Se me perguntarem,
por exemplo, qual dos traços, como a inteligência ou a sensibilidade,
prevalece mais na minha actividade escritural,
seria incapaz de responder. Nunca me senti sensível. Se inteligência tenho ou penso ter, é porque o mundo, ou os homens e suas
instituições, me atestam afirmativamente em diplomas disto ou daquilo. Se sou
sensível, é porque minha mulher receia muitas vezes certas situações que eu
possa viver. Tudo isso me vem do exterior, não aparece em mim como evidência
ou íntima comprovação. A única ilusão que tenho a meu respeito, em relação a
esta matéria, é desconfiar que devo ser um intuitivo, pois vários
acontecimentos e experiências várias confirmam mais ou menos que por vezes
sinto, ou pressinto, certas coisas que a realidade depois vai caucionar.»
Mas
o que é a intuição ...? Silva Carvalho: «É um
indivíduo dizer coisas sem saber muito bem o que está a dizer, ao acaso,
falando e sentindo gratuitamente, sem que a consciência esteja presente. Não
nos traz nenhum conhecimento. Pelo contrário, incomóda,
porque, finalmente, não nos oferece o conforto de qualquer sentimento
contemporâneo de qualquer realidade que se viva ou contemple. É o estar a
sentir coisas estupidamente, sem nenhuma razão visível que o justifique. É o
que me acontece quando escrevo.» (...) «Daí o eu dizer muitas vezes, aos
amigos simpáticos, que não sou um poeta. Muito menos
um criador. Poeta porque não tenho a ilusão de estar a fazer o que quer que
seja, criador porque não tenho a pretensão nem a necessidade de imitar essa
tradicional ideia de um Criador (...) no vértice da nossa humana mediocridade.»
Qual
o sentido, então, de uma “Estética da Estupidez” ...?
Que se ouça mais uma vez Silva Carvalho: «”Estética da Estupidez”, não no
sentido de se escrever coisas estúpidas (já há muitos que o fazem como se
fossem dotados de inteligência ou sensibilidade), mas no sentido de se ir
buscar a inspiração ao DISPARATE, na sua ressonância etimológica de soltar ou
libertar ou mesmo arrojar, esse extraordinário espaço da clivagem e da
separação.» O
leitor, não convencido, perguntará ainda: mas porquê Estupidez
...? E Silva Carvalho: «Simplesmente porque me parece essencial
tomar o ainda pejorativo na nossa civilização e fazer dele um momento ou
motivo de criativadade. Não há nesta atitude nada
contra a inteligência, a sensibilidade, todas as faculdades humanas que têm
sido objecto de carinho e de apreciação ao longo dos séculos. É mais uma
tentativa (...) de alargar as possibilidades (...) do discurso humano,
enriquecendo-o com pequenas achegas ainda não detectadas ou pouco detectadas
ao longo dos séculos da tradição ocidental.» Assim
sendo, e erguendo a mão ao poeta, bem poderemos dizer que foram os ratos que
roeram a circunferência da Lua de Sintra ao longo deste longo mês de Janeiro ... Pedro
Alvim in Cultura e Espectáculos Diário
de Lisboa de 28 de Janeiro de 1989 |
DA ESTUPIDEZ
Silva Carvalho
Porto, Brasília
Editora, 1988 NOVOS LIVROS
Silva
Carvalho é natural de Vila do Conde, tem 11 livros publicados, é leitor de Português
na Universidade de Santa Barbara, na Califórnia. Quem
tiver a sensibilidade sentada numa poltrona ou o intelecto repousado numa
cátedra, não deve ler os poemas Da Estupidez, de Silva Carvalho. De
uma forma truculenta, mais virada para si do que para os outros, em que
parece querer castigar-se, não direi por masoquismo mas por catarse, ou por
simples confessionismo de intenção criativa, Silva Carvalho abre aos seus
leitores a alma e o pensamento, nada lhes escondendo, com uma preocupação,
claramente não redentora mas artística, de mostrar a utensilagem e as
matérias-primas, e ainda toda a desordem de um atelier,
que estão por detrás de um quadro cuidadosamente exposto num salão. Isto
verifica-se, especialmente, mas não só, nos comentários que tão originalmente
acompanham os poemas. Poderíamos escolher entre os chavões alguns que nos
parecessem mais adequados ao seu discursivismo,
como impressionismo, concretismo e outros mais, com toda a imprecisão que uma
leitura atenta nos denunciaria, mas parece-nos, mais próximo da verdade,
dizer que a sua poesia procura surpreender, nem sempre o conseguindo, o devir
da sensibilidade e do pensamento, onde assomam livros e experiências
flutuando na placenta existencial, onde se interroga, se critica, se sofre. Entre
a gnose e o ontos, o autor não receia diversificar
o seu empreendimento pelo que é tocável pelos sentidos. É um homem que
percorre do culto ao primitivo. Gostei.
Razão para deixar este bocadinho: «No
começar de qualquer coisa há sempre/uma cegueira, um ponto
em branco onde a só/intuição pensa o acto ou a sua
loucura.» E,
já agora, um excerto do comentário a este poema: «Claro
que não sei muito bem o que está dito nesse texto, mas
gostei sobretudo do tom quase displicente que
adoptei. Fui mais pelo ritmo do que pelo pensamento, embora suspeite
que de toda aquela incongruência poderá, se se quiser, fazer
ressaltar um periclitante sentido, mesmo do insentido.»
J.M.(Joaquim Matos)
in Letras e Letras n.º 16 - 5 de Abril
1989. |
Da Estupidez Silva Carvalho Brasília Editora Silva
Carvalho explica-nos determinados poemas, aquilo que o levou a escrevê-los, a
corrigi-los, a suprimir ou a acrescentar esta ou aquela palavra, o que levou
a alterar-lhes o ritmo, o sentimento do momento que os gerou, etc. É evidente
que com isto em nada enriquece o que lá deixou escrito. Explicar um poema é
sempre tão difícil? Como se explica o canto de um pássaro? Ou os milhentos
acasos que produzem a palavra poética em determinado momento e em certo
espaço? Como
se explicam os «Momentos
matinais de queda na fantasia É
verdade que Silva Carvalho escreve num desses p/s: «E não largo a folha de
papel, aqui estou, desenvolvendo razoados mais ou menos enfadonhos e que não
interessam a ninguém, muito menos ao leitor hipotético. Uma chatice!» O
poeta confessa-se: Ele o diz, meIhor, ele o
escreve. Respeitemo-lo. M.
S. (Miguel Serrano)
in O Diário em 11 . Fevereiro 1989. |
Silva Carvalho Nem Prosa nem
Poesia Outra Coisa Brasília Editora
110 páginas Escrita pessoal esta de Silva Carvalho,
que acrescenta mais uma colectânea poética à sua já relativamente extensa
bibliografia. Do ponto de vista formal, trata-se de um livro dificilmente
catalogável. O autor vive actualmente em Goa, Índia, encontrando-se ligado à
Universidade de Goa. in Jornal de
Letras em 27 Novembro 1990. |
Silva Carvalho Nem Prosa nem
Poesia Outra Coisa Brasília
Editora 110 páginas
NARRAÇÃO
IMPULSIVA Parecendo
querer traduzir (glosar?) a frase de Kristeva (Ni
poema ni roman, mais polylogue),
Silva Carvalho questiona-se mais uma vez neste recente livro (NEM PROSA NEM
POESIA OUTRA COISA; Ed. Brasília) sobre a escrita (pág. 99): A
vida deixa-me assim em plena confusão de linguagens que se anulam ou
confrontam,
ou mais explicitamente noutro fragmento (pág.
49): Escrever,
escrever sempre, é a canção, não importa o quê, é a tradição risível, mas
escrever a incapacidade do ser como a incompetência do homem, escrever E
é nesse constante conflito abstraccionista de «escrita do acaso» (pág.
88), de referências a práticas quotidianas, de autocompreensão
íntima, que Silva Carvalho apresenta a consciência radical do
anticonformismo. Encontramos uma narração impulsiva, com intensidades
diversas na focagem e defesa de pontos de vista estéticos: discurso que
verbaliza a poesia na recusa de si mesma, na experimentação de uma dimensão
didáctica (pág.33):
Por isso se
escreve. Não para transmitir Excluindo
trechos de monotonia, justaposições repetitivas, a poesia de Silva Carvalho é
outra coisa: «Uma linguagem límpida. nada de
figuras» (pág. 41), «à procura de um verso que me transporte, / da
ponte onde o ser poderá sobreviver /» (pág. 23). Não
é somente a recusa da estética, mas inquietante ironia de recensão, uma recolocação
interessante da finalidade última da escrita. José
Emílio-Nelson in Pontos de Vista – Leituras Jornal
de Notícias de 3 Março de 1991 |
Silva Carvalho Mais ou Menos Black
Sun Editores O
DESEJO MAIS ÍNTIMO É DE ESCREVER Poesia
«Escrever, sem porquê nem previsível finalidade./ De estar aqui, assim
aceitando quantas palavras / surdem na escrita da consciência, na leitura /
do tempo ontológico. Sim, há um mundo aqui / que procura mais do que a
palavra, entendê-lo / deixou de ser uma tarefa porque é um prazer./ E depois
o impulso petrifica-se, um silência / perante o que
não advém verbalmente, perante / o que não advindo ainda é mais tempo do
tempo / humano. Mas a escrita continua, continuou.» in Revista LER N.º 45, Primavera de
1999. |
Silva Carvalho
A Experiência
Americana ao Vivo Edições Aquário
Ponto
prévio: não confundir com Armando Silva Carvalho. Os dois são poetas, mas
tudo os distingue: geração e espectro da obra. Silva Carvalho é mais novo (n.
1948) e começou a publicar mais tarde. Embora haja um primeiro livro de 1969,
a publicação regular ocorre a partir de 1977 (o exílio em França explicará o
hiato), com Memória do Presente, seguindo-se-Ihe
duas dezenas de títulos, em grande parte poesia, livros que deixam no ar uma
interrogação: porquê o silêncio? Talvez porque, como sublinha Luís Adriano
Carlos em texto de contracapa, a sua obra "reacende um duplo horror que
caracteriza o seu imaginário: o horror à metafísica platónica do belo e o
horror à supremacia aristotélica ou barroca da metáfora artística".
Sabemos bem como uma e outra têm vingado no derrame finissecular. Agora, com A
Experiência Americana ao Vivo - experiência que nos dera New
England em 2002 -, o autor empreende
o seu back to the
roots, isto é, revisita "os sítios
profanos" daquela América que atravessou nos dois sentidos, o geográfico
e o porético: "A experiência,
seja ela/ qual for, e sobra apenas o silêncio [...] Nenhum mito./ Nenhum
índio ou cowboy,/ apenas a terra, o continente,/ a paisagem, e dá para
sonhar [...] e dá para pensar." (p. 11) Antigo leitor de português em
Santa Barbara, no Sul da Califórnia, Silva Carvalho privilegia o diálogo com Olson e Creeley, mas também com
Sena e os modernistas americanos (Eliot, Williams e Stevens),
para que "o pós-modernismo faça algum sentido" (p. VII). A obra
divide-se em duas sequências, ou Livros, como lhes chama o autor. No Livro I,
"A Experiência Americana", estão agrupados 59 poemas, enquanto o
Livro II, "Ao Vivo", é composto por trezentos cantos de oito versos
cada. Poesia da experiência, já se viu, mas sem ademane fashion
ou truque metalinguístico: "Sem remorsos./ Homem,
sou. E calo-me./ Quarenta anos de experiência,/ e nem toda foi terrestre ou
americana,/ sorrio, e sorrindo ironizo./ / Estar aqui. Estar sempre aqui,/
onde quer que seja, enquanto durar [...] sinto o espírito do lugar, e sentir
dá-me / pela imaginação o que a ciência descobre." (p. 63) Como lembra
Luís Adriano Carlos, a "ruptura sistemática com a ideia de perfeição
formal, e portanto do belo, exprime sobretudo uma experiência do fascínio,
mesclada de medo e terribilità, perante
a vastidão esmagadora do [...] sublime, no sentido postulado por Burke e Kant." Autor de uma poesia escorada no
conceito de poreticismo, ou estética
da imperfeição, Silva Carvalho não abdica de pensar a poesia. O texto que
fecha o volume, "A posição de Jorge de Sena na poesia portuguesa do
século XX", é um bom exemplo do carácter reflexivo da obra. Eduardo
Pitta - "O Som & o Sentido" in Revista LER N.º 60, em Outubro
2003. |
Silva Carvalho Adivinha:
Estilicídio e Encíclia Brasília
Editora A
escrita e os dias Silva
Carvalho apresenta em ADIVINHA: ESTILlCÍDIO E ENCÍCLlA (Brasília Editora), uma «arquitectura»
confessional do «inexistente momento» (de uma vida afectiva insatisfatória). A preponderância da confissão, do registo das emoções, da
dimensão pessoal latente, o antagonismo persistente, caracterizam
demasiado «prosaicamente» a escrita: (pág.
7) «o atrevimento da escrita, antes da escrita» (pág.
8) «perder na escrita a consciência aflita.» (pág.
10) «Partindo do principio que nada disto / é poesia, o que é isto, assim,
prosaicamente? Dezenas de livros paulatinamente sofridos ao longo da escrita
e pensável vida,» (pág.
14) «quantos poemas perdidos ao longo da vida, /
assim, miseravelmente diluídos na escória dos dias, desinibidos espasmos da
consciência quando a invenção não tinha o constrangimento da materialidade
sempre embaraçante da escrita. Interessa-me agora possuir um ponto de
partida, visionar já no caminho» Num
outro verso, S. C., sintetiza a aparência ocasional do seu discurso na
fórmula «palavra já não poética!.., ou noutras abordagens
em que se escreve, p. ex., «de não saber muitas vezes o que escrevo», - pág.
52. O
autor assinala frequentemente a limitação obcecante da escrita redentora da
instabilidade da sua experiência: «Escrever no mais periférico de qualquer/
estética ou ideia de literatura, escrever/ este sortilégio de palavras
insubmissas», (pág. 97). Não que se trate de uma escrita-terapêutica, mas
numa ambição de afrontamento definitivo e incondicional de uma vivência no
limite do bloqueamento. O excelente poema FARTO DE SER ACUSADO, FARTO DE ME
VER ODIADO constitui um exemplo de (in)existência conflictual que sustenta toda a escrita de Silva
Carvalho: «um insuportável sofrimento... As solicitações dessa «tristeza
desmedida» com «desejo de outra coisa» instigam o leitor a uma cumplicidade. Essas
vozes, ou apelos de divagação, são um processo vicioso (pág. 54): «Leio
a realidade como se fosse filosofia, / leio a filosofia como ficção, leio a ficção/ como se estivesse diante da poesia, só
não/ leio a poesia. Minha ou dos outros, a poesia / vivo-a, em situação de
identidade ou alteridade,» e na pág. 60: «Este circulo
vicioso, a realidade lida/ como filosofia, a poesia vivida/ como realidade.
Levanto-me manhã cedo, essa luz,». Uma harmonia que acentua toda a
problemática de Adivinha: Estilicídio e Encíclia. A
bem dizer o poeta é animado por um «princípio orientador» que compensa a sua
individualidade perturbada e a sua escrita «como delírio existencial..:
«passar pelo tempo como um sincero paradoxismo» (pág. 93). Na observação da
«verdade do tempo» e do «círculo da sua queda». Estilicídio e Encíclia. José
Emílio-Nelson in Jornal
de Notícias de 20 Fevereiro de 1990 |
Silva Carvalho Adivinha:
Estilicídio e Encíclia
Brasília Editora, 111
págs. ADIVINHA:
ESTILICÍDIO E ENCÍCLIA Exílio Passante
dos quarenta e com doze títulos publicados, Silva Carvalho não quer ser «um
qualquer poeta de sempre fénil e mais ou menos
medíocre tradição lírica ponuguesa», como disse em
«Jorge de Sena, Poeta Postmodernista» (Nova
Renascença, 32/33, 1989), mais chocante para o bom gosto em que assentámos é
vê-lo responder a quem o boicota que um Eugénio de Andrade, um Ramos Rosa ou
um Humberto Helder «não ultrapassam sequer a
corrente do lirismo tradicional que vai mudando, e muito compreensivelmente,
a reboque da história, mas não fazendo história». Habituado a países e
líricas, tem procurado, em textos (inéditos) recentes, articular uma poética
como sempre faz dentro ou nas adjacências do poema. Observe-se esta abertura:
«No que me diz respeito e para efeitos de compreensão da minha própria obra,
eu vejo o século vinte português dividido em três momentos muito precisos. O
Modernismo, que corresponde à obra de Fernando Pessoa (1888), o
Pós-Modernismo, que corresponde à do Jorge de Sena (1919), e a época que
corresponde à minha obra (nascido em 1948), e que eu chamo, já que ainda não
há um nome, o Poreticismo. Como facilmente se pode
verificar, há uma distância de trinta anos a separar estes três nascimentos,
e o começo destas três obras. Não quero dizer com isto que o século vinte
português não tivesse ou não tenha outros movimentos ou outros destinos.
Quero dizer que para mim só estes são relevantes.» Fundamentado
em Derrida e na desconstrução, no verbo grego porizein, «abrir uma passagem ou um
caminho», conclui que «uma escrita porista
ou porética é aquela que abre passagem, que
abre caminho na aporia, isto é, no lugar sem caminho, na fronteira», que «procura
resolver problemas, achar soluções». Caracteriza-se
por ser tautológica - repete o mesmo mas, sobretudo, contém-se o definido na
definição -, parentética (a abertura de um novo espaço dá conta da
precariedade do pensamento humano), babélica, enquanto fundindo línguas e
linguagens diversas, e, por fim, apodemiálgica, ou
seja, «que não pode permanecer no mesmo sítio, que necessita de se deslocar».
Esta
quarta característica - que recorda o prazer de Silva Carvalho em actualizar
um léxico silenciado - lê-se às claras no título aqui apresentado, de escrita
«desassossegada e inquietante», inscrevendo-se em todos os seus
momentos e avançando, afinal, na aporia, sendo que «Uma coisa é certa, a
aventura continua». Um
diário americano entre 15 de Maio e 13 de Julho de 1987, formado por cem
poemas que são outras tantas adivinhações do já sabido, Estilicídio? «Queda
de água, gota a gota», ou morte do estilo; encíclia?
«Ondulação circular produzida na água pela queda de um corpo.» Deslocando a
própria vida, regular e monótona, a poesia deste «homem / sem raízes» ameaça
muitas fundações. Tenham cuidado. Ernesto
Rodrigues in Escolhas / LIVROS O
Jornal, Março de 1990 |
Silva Carvalho Assim Col. Poesia de
Autores Portugueses, Brasília
Editora, Porto, 1980, 108 p. A
TRANSFORMAÇÃO SUBTERRÂNEA Silva
Carvalho, «Assim» - Fomos nós, nestas mesmas páginas do «Tempo», que pela
primeira vez falámos de Silva Carvalho a propósito de Canções (1979). Entrar
na casa dos trinta anos – e o nosso autor-narrador di-lo expressamente, sem
complexos, numa afirmação de individualidade a que a nossa poesia não está
habituada -, publicar o seu quinto livro e não registar um eco sequer da
crítica mais ou menos encartada, aí há que desconfiar. Et
pour cause. Além
da afirmação do sujeito acima relevada, o que contraria um autodeterminado
vanguardismo, o autor procura buscar nos seus livros experiências de escrita,
sem deixar, e em simultâneo, de pensar o circundante e a vida em geral que a
poesia veicula. O livro de hoje, nos pares de exemplos binários em que é
fecundo, isso mesmo significa: em agrupamentos como salaz / jaz, hoje / age,
ordem / ardem, fala / falaz, hábito / habito, fá-lo / falo, sussurro / cicio,
ódio / ócio, etc., basta um simples desvio para instaurar a consequência
incómoda ao leitor de conteúdos e, logo para reconhecer a dificuldade de
relacionamento num mundo de contingências – onde à contingência de uma
mudança de fonemas, por ex., já destrói o edifício de certezas e
cristalizações de escrita. A
grande deslocação acontece, porém, no compromisso da materialidade da
palavra, em Memória do Presente (que, escrito em 67/68, será publicado
em 1977). A neologização por vezes forçada vem, com
Assim, serenamente despontar aqui e ali; por outro lado, a discursividade
da Memória retoma-se, mais feliz, em Canções, onde o ritmo é um
pouco o ritmo de Bob Dylan, de cujos títulos e
referências o livro se apropriou. De Suor do Tédio (1969) e Les trois Ages (1973)
nada diremos por enquanto; do último, todavia, afirma
o autor tratar-se de uma homenagem a Van Gogh, Nietzsche e Artaud ou o
percurso que se divide em rage / solitude / folie. Como
homenagem é este Assim. De organização também triádica, as primeira e terceira partes dão-nos em quarenta oitavas cada
(presença evidente de Camões), um eu protagonizando o salto do
pessimismo (disforia) à felicidade (euforia); ou, pelo menos, à capacidade de
interrogar formulários políticos e não só. O sujeito progride, vai do quarto
fechado ao ascensor ainda fechado, para transvasar, sob os reflexos de um sol
que só a ele espantam, perante os livros além-da-vitrina: a resposta sobre se
há ou não comunhão com estes verificar-se-á somente na terceira parte, que
decorre de trinta poemas intermédios, inscritos no (do) caótico da rua. Ora,
também esta transformação subterrânea - «não a nível da acção do indivíduo
sobre o meio, mas antes uma certa negação de valores e uma transformação do
sujeito em progresso», como nos dizia Silva Carvalho -, parece ser mal
entendida por quem continua a preferir a revolta explícita e caricatural do
poema metralhadora. A recusa do autor significa outra esperança: «Sonha
com outra poética (...) / onde a palavra possa viver livre e independente /
dos dicionários cosmopolitas.» Ou: «Mas prefiro ser eu a descobrir a
transgressão.» Que passa pela visão da anarquia, «esse romântico lugar»; pela
certeza do futuro: «alguém há-de ler-me»; pelo choque da sintaxe contra a
semântica; pelas rimas internas ... Como
lemos, sobretudo, frases, aqui deixamos uma, impressionantemente única: «Olha,
quero dizer-te / quanto aprecio o calor liso dos teus / olhos.» Ernesto
Rodrigues in Livros/crítica Tempo,
de 5 Junho de 1980 |
Silva Carvalho Assim Brasília
Editora, Um livro de Silva
Carvalho ASSIM
(se) reescreve a Poesia «Por
um lado, eu gostaria- de. escrever
um livro com uma só palavra,» - diz-me Silva Carvalho, que assina um
lançamento da Brasília Editora, Assim, quinto livro de urna produção
ainda ignorada pelos críticos, embora, na colecção «Poesia de Autores
Portugueses» daquela casa, emparceire com José Augusto Seabra, Pedro Homem de
Mello, Saúl Dias, Mário Cláudio ou Fernando Echevarria.
Estamos,
numa destas últimas segundas-feiras, ali nas bandas do Campo Grande, saídos
da Faculdade de Letras que este livro - na- sua organização e reflexão
textual - põe em causa: significado, significante, atingir-se-á o signo?
Define-ma, obra triádica, como «um livro escolar», mas é evidente que a própria
instituição não aceita os desvios sintácticos que o texto tecido deixa
filtrar. Um apelo nasce («Peço-vos: leiam-me» ou
«Lê-me, amigo»); - uma invocação (ou evocação?) outra, porém, quase se perde no emaranhado: «Mãe, vem,
serena e terrestre, dar-me o beijo». Acontece,
entretanto, a reflexão da vida através da poesia, «no que teimamos -
acrescenta - Antero, Pessoa, eu, Augustina, .embora
Antero fosse um idealista». Reivindica-se,
neste quadro, a afirmação da individualidade contra a desumanização ou impessoalização de certas tendências artísticas da (dita)
vanguarda. «Tento
- diz ainda Silva Carvalho - imitar os meus mestres numa perspectiva
renascentista: sou contra a originalidade a todo o custo, não ignorando que
essa imitação pode transmitir-se na autêntica originalidade». As
homenagens Homenagem
camoniana parecem ser as primeira e terceira partes
da obra, quarenta mais quarenta oitavas, que o autor explica pela intenção
inicial de arquitectar uma epopeia, sem povo, a nível de indivíduo dentro da
cidade. A primeira série suspende-se em 1976 e dará sequência a um romance
sobre a experiência do exílio em Paris que de romance só ainda tem o .titulo: Fogo. Estas
quarenta oitavas (1976) - o sujeito que passa de uma situação fechada (que o
seu criador não receia qualificar de miserabilista) à luz da rua, onde
acontece o espanto original (Alberto Caeiro) e a dúvida sobre a comunhão
através do livro - retomam-se, pois, numa segunda série de quarenta oitavas
(1978), ultrapassada agora a misantropia pela perseguição de um sentido
(sempre em devir) acerca da escrita, do país, da relação de forças e
conceitos à escala universal, etc. Este
“rasgo" contudo, foi precedido de 30 poemas (1977), onde a mudança
processada a nível de linguagem instala um prazer raro que os cortes na
cadeia sintagmática redistribuem. Um
livro de uma só palavra Assim constituía-se, de certo modo, numa dupla
verificação: a frequência do advérbio e o desejo de visionar a poesia como
uma iniciação. «Um
significado esotérico» sobe, através da explicação de Silva Carvalho, desde
as tardes de Verão, em Vila do Conde, quando, nos seus sete/oito anos, um tio
(tuberculoso) lia o Só do (tuberculoso) António Nobre. Uma
palavra só. Mas a homenagem não é devida a Nobre; é, antes, uma homenagem à
iniciação - me confidencia que nunca leu «o livro mais triste que há em
Portugal». A familiaridade só-so (advérbio inglês)
deu, na tradução deste, assim. A
terminar (passando, entre o mais, o «anarquista religioso» que foi José
Régio), o anúncio, para breve, de novos 50 poemas - Explosões - «em
que tento fazer reviver, no aspecto gráfico, uma certa poesia, americana».
Diremos, ainda, enquanto aguardamos as obras em gaveta, «com características
demasiado intimistas e miserabilistas, chegando a pôr em causa a
literariedade», que António Silva Carvalho afirmou, anteriormente, Suor do
Tédio 1969), Les Trois
Ages (1973), Memória do Presente (1977) e Canções (1978). Ernesto
Rodrigues in Cultura Portugal
HOJE de 12 Junho de 1980 |
SILVA CARVALHO
Canções
TEMPOÉTICO Bob
Dylan No
regresso de um novo ano (universitário, pois), encontro o amigo Silva
Carvalho, um segredo qualquer pendente das mãos - pouco mais de cem páginas
brancas de longos versos interiores, homenagem a Bob Dylan,
aos blues, a Hendrix («Ouçam
a versão de onze minutos deste Red House de Hendrix no disco In The West»). Os
títulos dos poemas - cinquenta novos belos títulos remetem para Dylan e, sacrificadamente,
(como) de um exílio, a lava sobe, complexa às vezes, queimando a (nossa)
indiferença de leitores consumistas. Da composição manual saltou já para as
livrarias mais sofisticadas - enquanto, um dom quichote?, o autor se me
depara, um segredo qualquer pendente das mãos... Ernesto
Rodrigues in Tempoético Tempo,
15 Fevereiro de 1979 |
Silva Carvalho Em Questão
Brasília Editora, 106
págs. Silva
Carvalho: Uma teoria das impurezas cruéis (onde
se fala de um dos exemplos mais claros, segundo o crítico, do conflito a que,
no final do século, se assiste entre a cultura da palavra e a consciência do
seu esgotamento). 1.º
O poeta Silva Carvalho não é o poeta Armando Silva Carvalho. 2.º
Em 1992, Silva Carvalho tinha já uma razoavelmente vasta obra poética: 14
títulos ao longo de 22 anos de publicação. Até 1999, sete novos livros foram
acrescentados ao currículo (poesia, narrativa e ensaio). 3.º
O nome de Silva Carvalho tem desfalecido também por acção indirecta do nome
do outro (Armando Silva Carvalho). 4.º
Há alguns anos atrás, o outro já invectivou Silva Carvalho em polémicas
jornalísticas. 5.º
Silva Carvalho não tem culpa de se chamar Silva Carvalho. 6.º
Silva Carvalho é poeta, e publicou Em Questão (*). 7.º
O texto crítico que se segue ignora polémicas onomásticas. Pode-se
afirmar, sem receio de cair em generalizações apressadas, que o traço
dominante da literatura do século XX, e do pensamento literário que a foi
enquadrando, consistiu não só na construção de uma aguda consciência da
linguagem, mas sobretudo no ataque à validade da própria
linguagem como instrumento cultural de representação da experiência. A
iconoclastia e a experimentação por que o Modernismo tentou, de Rimbaud aos surrealistas, explorar as possibilidades
fónicas e semiológicas das palavras prolongaram-se no apuramento das várias
atitudes experimentalistas dos anos Sessenta e Setenta. Por outro lado, ao
cepticismo linguístico subjacente aos códigos de silêncio por
que a literatura, e particularmente a poesia, foi sendo proposta, sobretudo
partir da segunda metade do século, não é alheia a consciência de um
abastardamento do mundo da linguagem, de um desgaste das formas verbais e
sintácticas, de uma nulificação da palavra, levados a cabo pelos meios de
comunicação de massa. Se a atitude de negação inspirada nos modernistas era
(é) ainda estética nos seus intuitos transformadores, embora contra-cultural nos seus fundamentos epistemológicos, a
atitude de cepticismo linguístico é marcadamente terminalista,
suicidária, pós-cultural. Vem
tudo isto a propósito da poesia de Silva Carvalho que, em minha opinião,
representa, no contexto da poesia portuguesa contemporânea, um dos exemplos
mais claros (ou clarividentes) do conflito a que, neste final de século, se
assiste entre a cultura da palavra e a consciência do seu esgotamento.
Consideremos o seguinte excerto:
(*)
Silva Carvalho: Em Questão, Brasília Editora, Porto, 1992. Este
excerto revela, desde logo, uma prática poética que se afirma por uma legibilidade
difícil - quer por acção dos filosofemas que a percorrem, quer em virtude
da tutela que um vocábulo estranho (no caso, tauxia) pode exercer
sobre o espaço ideativo do poema, quer ainda devido ao recurso a combinações
semânticas opacas. Como é óbvio, esta dificuldade reduz o campo de leitores
da poesia de Silva Carvalho. Mas será que se pode enfrentar o sentimento de
um esgotamento da linguagem com outra atitude que não seja a de uma reinstrumentalização dessa mesma linguagem? Será que se
pode reconhecer que se vive numa descaracterizada cultura da palavra, ou
reconhecer que comunicamos por uma "estratégia da língua em estado
pobre" (p. 39), sem, ao mesmo tempo, reavaliar o significado da própria
poesia (a arte da palavra) no mundo contemporâneo? Não será que a nossa
contemporânea perplexidade perante uma existência que só o é verdadeiramente
quando se transforma em imagem ou em palavra nos meios de comunicação de
massa deve ser acompanhada pela reverberação da consequente contingência da
experiência poética? A resposta é dada pelo próprio poeta - mesmo quando ela
surge sob a forma de interrogação:
Voltemos
um pouco atrás, e consideremos ainda o primeiro excerto que foi citado. Julgo
que ele epitomiza bem o quadro etiológico por que
Em Questão se sugere em poesia enquanto conjunto reflexivo das causas
do próprio fazer poético. Este é um aspecto que pouco terá de original, na
medida em que se inscreve na linha da metapoesia
contemporânea que tem usado o auto-comentário até,
por vezes, aos limites do insuportável. Contudo, também acredito que poucos são
os poetas portugueses que arriscam a verosimilhança poética de um sentir
intelectual pelas fissuras da língua, pela disposição de perseguir o
conhecimento daquela "adurência mimética da predisposição à fala"
(p. 71) que institui a escrita artística. Poucos são os poetas que perseveram
no (re)conhecimento
teórico da insolvência dos meios linguísticos, da sua "dissolução e
queda" (p. 71) - recordo, no quadro de apropriação (problematização
poética) do léxico das chamadas ciências exactas, os exemplos de Vitorino
Nemésio em Limite de Idade e de Alexandre Vargas em Organum. Poucos são os teóricos que (se)
jogam (n)um poema pelos lances discursivos desse (re)conhecimento. Silva Carvalho faz tudo isso com a
convicção de quem pouco tem a perder; com a esperança de quem alguma coisa
há-de ganhar; com a razão de quem algum dia será escutado:
Se
posso compreender correctamente a poesia de Silva Carvalho - embora ignorando
a certeza de que sei o que é compreender - , julgo
que Em Questão resume os vários aspectos da produção deste autor num
sentido dominante que aponta obsessivamente para a configuração de uma
teoria possível do poema. Uma teoria proposta, não raras vezes, sob a
forma de poemas possíveis de uma teoria. Designemo-Ia
por a teoria das impurezas cruéis, inspirando-nos num verso
contido neste volume, designadamente o que se refere a escritores que (...) obedecem à
ordem, Uma
teoria das impurezas cruéis será uma teoria em que
as palavras, todas as palavras, bem como os elos sintácticos que lhes
organizam as virtudes comunicativas, são encarados fora de um sistema de
convenções de escrita, de programações estéticas. Será uma teoria que
sobrevaloriza, através da acentuação dos índices de dificuldade referencial
das palavras, a opacidade epistemológica por que se descreve (ou se tenta
reproduzir) a dificuldade de adequação da linguagem à experiência. Será uma
teoria para a qual a língua não tem impurezas, ou palavras maculadas, ou
cruéis excrescências que o poeta deva sabiamente evitar, fazer desaparecer, a
fim de gerar uma poesia adocicada nos seus tons particulares, mas
razoavelmente avinagrada na sua generalidade pela busca exclusiva do
reconhecimento público: fingem
uma arte de escrever com que fundam Será
uma teoria, enfim, que ao pugnar pela exigência de uma experiência de vida
para a poesia, não pode senão libertar as palavras dos constrangimentos
convencionais por que algumas podem ser consideradas menos poéticas do que
outras. Por isso, a poesia (toda a poesia) de Silva Carvalho é um contínuo
(quase obsessivo) desdobrar de palavras estranhas, inabituais, e de
deliberados abusos catacréticos:
Estes
são alguns dos muitos exemplos que poderiam ser citados. É difícil a sua
compreensão? Sem dúvida. Mas quais são as critérios
da dificuldade? Dizem eles respeito à formação cultural do leitor ou à
economia da escrita do texto? Têm a ver com a temática tratada ou com a
própria natureza ontológica do discurso humano? Responder a estas perguntas
equivale a reconhecer, desde logo, um dos mais importantes níveis de eficácia
da poesia de Silva Carvalho, a fazer cumprir um dos seus impulsos mais
profundos ou, conforme escreve este autor: (...) Que amor É
pouco poética, a escrita de Silva Carvalho? Talvez. Mas quem poderá dizer o
que é a poesia, a literatura, sem deixar de fora muito daquilo que também
poesia e literatura pode ser? Responder a esta
pergunta equivale a confrontarmo-nos com a contingência do dizer humano, do
fazer linguístico e do construir artístico. É também isto que a poesia de
Silva Carvalho quer desesperadamente sublinhar. É também isto que, talvez,
tenha contribuído para a dolorosa amnésia em que o nome deste autor (não) tem
existido. Manuel
Frias Martins in As Trevas Inocentes Colecção
Parque dos Poetas n.º 3 - Aríon Publicações |
Silva Carvalho O Princípio do
Eco Brasília
Editora, POESIA
ACTUAL Primeiro
volume da “Trilogia porética”, de Silva
Carvalho, Brasília Editora, “O princípio do eco”, no fundamental,
exemplifica o que o autor chama de “o poreticismo” (“uma
escrita porista ou porética
é aquela que abre passagem, que abre caminho na aporia, isto é, no lugar sem
caminho, na fronteira”, S.C.). O
problema da autocriação assuma (embora nas constelações diarísticas a que
recorre o poema) a posição de “arte poética” (veja-se a alternativa, por ex.
de Nuno Júdice, no recente número da Hífen, de Inês Lourenço, sobre esse
tema). Arte
poética da inadequação, da emergência de uma flexibilidade de pressuposições
subjectivas, a poesia de Silva Carvalho “trata a problemática do “sentimento”
ou do “sentir” ou mesmo da “sensibilidade” em finais do século” (S.C.) com as
objecções várias de retórica moldadas na pluralidade
da poesia finissecular, colocando-se, Silva Carvalho, na apoteosa da sua
própria solução (“O poema quer viver da história pessoal”; pág. 37). O
“princípio” (“ (...) perfilo-me / eco a pensar (...), “umas vezes o poema,
outras vezes a vida”; pág. 67; 33) desenvolve um texto do “acto poético”
(pág. 113) que (como em Rui Cinatti, Raul de Carvalho) desdiviniza
o poético (“não preciso do poema como monumento à humanidade”; pág. Cit.)com o alcance da referência à trivialidade, à ironia
do sujeito do poema, à plausibilidade da indiferenciação da matéria poética
(“A inspiração é cada vez mais, do furor poético / de vacilantes estéticas
nascidas no começo”; pág. 101), simulação depreciativa de alguns padrões
professados pela poesia actual. José
Emílio-Nelson in Leituras Jornal
de Notícias de 24 Maio de 1994 |
Silva Carvalho O PRESENTE, A
PRESENÇA Brasília
Editora, UM
EMPOBRECIMENTO POÉTICO Constitui
o último livro da Pentalogia Americana, o livro O
PRESENTE A PRESENÇA, de Silva Carvalho. A opção de criatividade de Silva
Carvalho não tem estimulado recensões de intenção, dada a sua exclusão
radical das poéticas definidas (e definidoras) na época contemporânea; opção
frontal que afastará a atenção dos que recepcionam esses nomes mais
unanimemente consagrados ( de Eugénio de Andrade a
António Ramos Rosa, a Herberto Hélder). A
leitura dos livros de Silva Carvalho não exclui a adesão à pluralidade das
outras soluções. Entendo até que a proposta idealizada de Silva Carvalho é
complementaridade: não na ruptura evidente afirmada pelo próprio poeta (em
estudos e na entrevista de Outubro passado ao JL), mas no retomar de temáticas
epigráficas (se se pode dizer assim, para significar o questionário da
“insolvência dos meios linguísticos”, cf. Manuel Frias Martins, que nessa
orientação acrescenta os nomes de Vitorino Nemésio e Alexandre Vargas). A
presença da poesia, em S.C., aparece pela negativa na afirmação de um
empobrecimento poético, de “outra coisa” que “não se trata de arte” em que “o
poema nunca é o poema”, para citar, O PRESENTE, A PRESENÇA. Essa
proclamação da imperfeição, insisto em dizer, do
empobrecimento poético, é, afinal, contribuição poética de Silva Carvalho.
Esse questionar da perfeição, com convicções de prioridade, obriga a uma
repetição constante nos volumes sequenciais da Pentalogia
Americana: (DA
ESTUPIDEZ; ADIVINHA: ESTILICÍDIO E ENCÍCLICA; NEM PROSA NEM
POESIA OUTRA COISA; EM QUESTÃO; O PRESENTE, A PRESENÇA). Repetição
de perplexidades (S. C. refere a “perplexidade ontológica”, ou, como diria
eu, perplexidade categorial); perplexidades que constituem o traço posicional
do eu-poético como elemento fundador do texto. Todavia,
o que é mais incisivo e o que causará mais estranheza é a manifestação do
primado do poético na aparência do teórico, inevitável em sequências
insistentes da sua contestação. Talvez
seja polémico designar uma poesia “contra a presença da poesia” (S. C.) como
poesia do sortilégio teórico que não legitima a contingência da perfeição,
mas é, nesse sentido, incontestavelmente de reconhecer e divulgar. (O PRESENTE, A
PRESENÇA; autor: Silva Carvalho; editor: Brasília Editora, 70 págs.). José
Emílio-Nelson in Leituras Jornal
de Notícias de 9 Fevereiro de 1993 |
Silva Carvalho As Estações
(1996), Edições Aquário , Outubro 2004 O
mínimo e o excesso ...
Poderíamos também falar em excesso no caso de um livro de Silva Carvalho, As
Estações. A sua leitura ocasiona uma certa perplexidade. Não raro, o
desenvolvimento dos poemas aproxima-se do de um ensaio. Recorre-se a
interrogações, a uma terminologia especializada, a noções abstractas que
conduzem esta poesia para uma espécie de conceptualismo. Mas, de súbito, o
tom pode ser outro: Mas agora, depois das
últimas descobertas, olhar Fernando
Guimarães in Crónica de poesia JL de
14 - 27 Setembro 2005 |
Silva Carvalho Que Estupidez!, A Experiência
Americana Ao Vivo SILVA
CARVALHO: VIVER E CONTAR A VIDA A já longa obra de Silva Carvalho (o primeiro livro de poesia Suor
do Tédio foi editado em 1969, aos 21 anos do autor) é bem um caso de errância
geográfica e de escrita, dimensões dificilmente separáveis no percurso
criativo e reflexivo deste autor. A geometria variável desta obra percorre poesia, romance e
ensaio literário, com edições e reedições espalhadas por uma mão cheia de
casas editoras, avançando e regressando a temas e locais que preenchem
recorrentemente uma vida literariamente contada. É precisamente essa assumida
não separação entre dimensões vividas e literárias que cose e dá coerência a
esta obra global, onde continuamente somos chamados a partilhar com Silva
Carvalho pensamentos, acasos, quotidianos, lugares, não necessariamente
apresentados como exemplares ou excepcionais, mas inscrevendo-se aos poucos,
sem imposição, num jogo de espelhos, de reflexões mútuas, entre o acontecido
e o modo de o pensar e de o dizer, acabando por envolver o leitor nesse
processo, de lhe permitir situações de contacto e de contágio com o que lê,
com os momentos vividos que são desfiados à sua frente. Nas Edições Aquário saíram já este ano dois livros: o romance Que
Estupidez! e a obra poética A Experiência
Americana Ao Vivo, apresentado como a junção de dois livros distintos, a que
se soma, ainda, um breve ensaio A Posição de Jorge de Sena na Poesia
Portuguesa do Século XX. Jorge de Sena é, precisamente, figura invocada, quase como
mítico parceiro de reflexão, nesta experiência americana que constitui
a matéria prima de ambas as obras, retratando o percurso e as reflexões de Silva Carvalho no
Estados Unidos, onde foi leitor, primeiro na Universidade da California (Santa Barbara), na segunda metade da década
de 80, depois na Universidade de Massachusetts, entre 97 e 2001 (e tudo isto
depois da experiência francesa dos anos 60/70, e da Índia pelo meio, e
de Portugal sempre e em todo o lado). E o que nos é apresentado nestes livros, em que diferentes
linguagens literárias são utilizadas para contar cada um destes períodos da
vida do autor, é a partilha pública da interiorização de uma América
simultaneamente vivida e imaginada, a deambulação pelos lugares míticos que
constroem uma terra tão carregada de sentidos, tão presentes nos quotidianos
ocidentais, que permitem que lá se viva sem nunca antes se ter lá estado. Ao ponto de, quando para lá se viaja, se estar, paradoxalmente,
a caminhar de volta às raízes, back to the roots, como diz o
autor. E a força dessa dessa experiência
física e mental de habitar os lugares e a língua de uma matéria sonhada, de
um tempo mítico onde convergem índios e cowboys, as estradas do deserto, Dylan e calças levy’s, as cidades
imensas e o deserto sem fim, a força dessa experiência é tal que “era tempo
de dar uma linguagem/ ao que ficou da experiência desta passagem/ por esta
parte do continente.” (A Experiência Americana Ao Vivo). É uma América terra sonhada e sonho habitado fisicamente que
desfila nas páginas das duas obras publicadas, escritas em tempos separados
dez anos, o tempo diferenciado de cada uma das estadias americanas. No romance explicita-se aquilo que nos poemas já se deixava
antever, que experimentar um lugar é, simultaneamente, experimentar a língua
com que esse lugar é construído e pensado. Essa fisicalidade da língua é,
aliás, um tema assumido por Silva Carvalho, fazendo parte da sua permanente
reflexão sobre a vida vivida, o modo de reflectir sobre ela e o processo de
contar, de exprimir a outros, a incorporação – logo, o tornar realidade
sentida – de um mundo por onde se passa, sendo secundário o modo como esse
mundo é, e o importante, aquilo que conta, é como esse mundo é sentido, nos
transforma pela sua presença e o transformamos pela nossa passagem e pela
nossa reflexão sobre ele. O que sentimos é que é, e o que sentimos é,
simultaneamente, o que queremos sentir e o que nos é proporcionado sentir
pelo imenso acaso da vida. Construir o nosso mundo e habitá-lo de forma livre, pode bem ser
uma das leituras de fundo desta obra em permanente (re)construção, e aí
torna-se irrelevante a verdade positivista dos factos (“E se eu, que vivo
actualmente nos Estados Unidos, sou apenas a expressão do desejo e da
invenção de um gajo que reside em Portugal, por exemplo, em Sintra? Um gajo
frustrado por viver num país frustrado e que fantasia uma história de alguém
que vive em Massachusetts…?” Que Estupidez!) Porque a verdadeira história será sempre a de quem vive nos
estados unidos da imaginação, da memória construída, de um futuro projectado,
de relações humanas fraternas e amorosas, do jogo (doloroso) de uma outra
língua, da esperança de encontrar a humanidade naqueles que nos são próximos
e que amamos, mas também em quem nos cruzamos por acaso e que refazem, em
permanência, o retrato que queremos ter dessa mesma
humanidade. Duas últimas notas, para a intensidade lírica com que um
quotidiano é descrito Carvalho, Silva (2003), Que Estupidez!, Edições Aquário Carvalho,
Silva (2003), A Experiência Americana Ao Vivo, Edições Aquário Carlos António in
Revista Utopia, 16 de 2003 |
O
RITO DIÁRIO de um HIPOCONDRÍACO Obsessão. Escrever para não morrer. Quais são as razões que
levam um indivíduo a escrever ano após ano sem que um eco se faça ouvir ao
trabalho empreendido desde os fins dos anos sessenta? Abandonar, calar-se, deixar
a escritura aos «especialistas devidamente credenciados», é coisa que, tudo
faz pensar, está longe das intenções de Silva Carvalho.
De passagem em França caiu-me nas mãos um livro quase oficial sobre a poesia
portuguesa de 1935 a 2000, «Anthologie de
Algumas palavras sobre o livro que hoje nos ocupa, O Rito Diário de um
Hipocondríaco, dois textos, duas escrituras muito diferentes, o mesmo autor a
33 anos de intervalo, 1968 o primeiro, 2001 o segundo. O Rito é uma ode
triunfal ao sentimento de vazio e solidão, numa república de estudantes um
personagem gordo e com tendências à calvície, o autor, faz
vinte anos e não é feliz. Estudar medicina não parece trazer-lhe uma
suficiente razão de viver e o mundo que o envolve é dum estrangulamento
total. Nesse mesmo ano, aqui e ali, estalam revoltas que vão muito mais além
duma reivindicação de pão para a boca ou da necessidade de se fazer comandar
por um providencial grande timoneiro qualquer. Mas ali, em Coimbra, num
Portugal prisioneiro dum sistema e de muita água benta, homens jovens e
jovens mulheres vivem em compartimentos bem estanques, compartindo no entanto
os valores que a ordem moral se esforça
A língua utilizada por Silva Carvalho nos seus monólogos de prisioneiro em
busca de absoluto é a coisa mais cómica, trágica, musical e afastada já nessa
época de tudo o que se fazia no país onde nascemos: «Dói o despertar para
mais um dia. Num diuturno ápice remeloso a realidade imiscui-se sorrateira
nos interstícios da consciência para a batalha das horas fugentes. Um clarão
acidulado e baço absorve a primeva e dormente disposição para o catalogar
inoportuno e doloroso dos objectos ubíquos. Intermitentes bandas sonoras
inscrevem no meu corpo arabescos irritantes e dispersos, um cogumelo de vapor
mascavado corrói a frouxa durindana do som», assim começam essas noventa
páginas de um texto que só tem como defeito ser demasiado curto.
O Diário de um Hipocondríaco tem início a 13 de Fevereiro de 2001
Um humor impertinente, em várias passagens do diário, não contribui a que as
nossas veneradas instituições possam ter pelo autor uma qualquer estima, isso
na hipótese de que alguns dos seus membros se dignassem a perder o seu tempo
com semelhantes leituras. Vejamos o que diz o autor a propósito da afirmação
do Pessoa de que a sua pátria é a língua portuguesa: 14 de Fevereiro, página
101: (…) A língua portuguesa não é a minha pátria, oh não!,
é somente a matéria de que me sirvo para ganhar a vida. Como, em Portugal,
também acontece com o francês que ensino em Sintra, na escola secundária. (…)
Como cidadão que paga os seus impostos, não concordo absolutamente nada que
se gaste dinheiro como num Instituto Camões, acho que primeiro se deveria
tentar resolver os problemas do país, isto é, dos seus habitantes, e só
depois nos deveríamos entregar a veleidades linguísticas e identitárias…(…) as relações que mantenho com o IC são meramente
capitalistas, não são patriotas. Eles precisam de mim, eu preciso do dinheiro
com que me pagam os serviços prestados. Não há mais nada entre nós.
Não se equivoquem, o diário não é um manifesto, não é só isso, é também um
olhar sobre as pequenas coisas do quotidiano e também um questionamento sobre
outras que podemos ousar nomear de essenciais, ou, pelo menos, tão essenciais
como aquelas que esta revista pretende modestamente utilizar como
contribuição à transformação do mundo; coisas mais próximas do íntimo, do
ser, dos inumeráveis sentimentos ligados à existência: da alegria e da
tristeza, da angústia e da loucura, da vontade de viver e da vontade de
morrer.
Carvalho, Silva (2004), O Rito Diário de um Hipocondríaco, Edições Aquário Elisiário
Lapa in Revista Utopia, 20 de 2005 |
DÍPTICO MUSICAL Março 11,
2007 Se pensarmos em cinco poetas
portugueses nascidos na segunda metade da década de 1940, talvez nos
lembremos de nomes como os de Joaquim Manuel Magalhães (n. 1945), Al Berto
(n. 1948), José Agostinho Baptista (n. 1948), Nuno Júdice (n. 1949) ou Hélder
Moura Pereira (n. 1949). Porém, há um leque muito mais alargado de nomes dos
quais dificilmente nos lembraríamos. Entre eles, o
de Silva Carvalho (n. 1948) é talvez o menos conhecido de todos. Não sabemos
as razões que explicam esse desconhecimento, mas ao entrar nesta obra que
começou a desenhar-se em 1969, com um livro de nome Suor do Tédio,
desconfiamos que tal se deva ao que menos agrada às cátedras e leitorados da
literatura portuguesa: a ousadia. Neste caso específico, a ousadia começa
logo na ruptura com os modelos poéticos ocidentais, na rejeição da
versejadura nacional e dos preconceitos estéticos e estilísticos que, ora
enformando, ora deformando, contaminam muita da poesia que por cá se vai
produzindo. Díptico Musical, publicado em Novembro de 2005,
foi-me oferecido por João Urbano, editor da revista Nada, a quem se
devem as palavras inscritas na contracapa deste livro: «Em Silva Carvalho
assistimos a uma deslocação, senão mesmo a uma inversão, de todos os valores
poéticos, assistimos à rasura das poéticas neo-românticas e neo-simbolistas
que dominam ainda a paisagem portuguesa, para que passe outra coisa muito
mais exigente e arriscada, que não se contenta mais com o pequeno lume da
poesia, seu lirismo complacente, essa destiladora de nostalgia, da pequena
dor sacramental, e sem recair mais nas suas ilusões ou nos seus jogos de
embriaguez redentora, alquímica, minimalista, perfeccionista e gnosiológica».
São palavras que se ajustam na perfeição aos dois conjuntos que compõem Díptico
Musical, assim intitulado por razões que o próprio autor explica num
texto do segundo conjunto: «vou chamar aos dois últimos livros escritos, /
esta Rede do Discurso e esse Quase, Díptico Musical, de
tal maneira as canções que agora passam / pela rádio têm sido essenciais na
feitura de mim / escrita de textos em livros personalizados» (p. 181). O
musical do título é, deste modo, consequência mais de um acaso do que de um
conceito a priori, ele resulta já de uma
constatação a posteriori apenas possível devido ao constante diálogo
que o “sujeito poético” mantém consigo próprio no espaço interior dos seus
textos. Pela segunda vez lhes chamo textos e não poemas, pois assim parece
ser, na medida em que se inscrevem no campo da poesia como uma interrogação
constante das premissas poéticas, éticas e estéticas ocidentais. Ao poema
prefere o autor o texto, ao verso prefere a linha ou qualquer coisa de
indefinível que se inaugura entre os dois. A primeira impressão desta leitura
é pois a de uma poesia que não é poética – no sentido que usualmente se dá ao
conceito -, assemelhando-se mais ao ensaio ou a qualquer outra coisa que, em
última instância, diríamos ser apenas literatura. Neste lugar da literatura encontramos proposta uma porética:
«Porética é, senão a filosofia, a actividade,
abrir / uma passagem todos os dias e a todas as horas, aqui / e ali, não só
no linguajar (os heróis mortalmente / desaparecidos, cadáveres da ordem
tumefacta), / mas na diversidade dos acontecimentos diários / onde se possa realmente
sentir a realidade nova» (p. 124). A porética
resulta numa musicalidade muito singular, também ela feita de metáforas,
analogias, aliterações: «da voz que é foz faz a vez» (p. 34), «a
vez voraz / do sem voz» (p. 83), «um nefasto fasto. Rasto de quê?»
(p. 160). As palavras como que se puxam umas às outras, sugerem-se, uma
palavra ecoa já uma outra que pede para ser evocada, para ser desenhada no
corpo do texto, para ser parte integrante desse corpo. O ritmo de produção é
impressionantemente quotidiano, quase sufocante, como se a escrita fosse um
hábito no qual o homem se faz texto e o texto se erige como dilação natural
do homem: «Estou a gostar deste texto. Estou, estupidamente, / a gostar de
mim» (p. 137). Esta é uma escrita sem tempos mortos, feita a um ritmo
alucinante (13 textos num só dia!) que pode oprimir a respiração da leitura,
impondo-se ao leitor e exigindo-lhe uma predisposição que é um duelo
permanente. É um ritmo que não se furta ao ruído, à intromissão de uma
musicalidade vocabular muito pouco usual em livros de poesia: acmástica,
aletologia, amíntica, borborigmos, catavético,
ctónico, deiscência, epulótica, esplenética, intonativas,
ortolexia, paratáctica, solecismo, tauxia, ustão, etc. Num mesmo poema podemos vislumbrar palavras como ingluviosa, inópia,
insimulando, intermúndio, irrogar. A esta riqueza lexical corresponde aquilo
a que o autor chama de catacrese (emprego de termos com significação
diferente da usual, por falta de termos próprios na língua), uma espécie de
metodologia da porética que reafirma os limites da
linguagem. Isto justifica o tom de uma poesia sem soluções nem verdades,
anticonvencional, onde, talvez por isso mesmo, encontramos recorrentemente o
emprego da expressão «o que quer que seja». Em dois perigos incorre o leitor:
julgar esta uma escrita
ensimesmada e presunçosa. Há imensos ecos da vida quotidiana nestes textos de
Silva Carvalho, referências a objectos, canais de televisão, canções,
autores, ecos do mundo contemporâneo. Há um apego que é também, ao mesmo tempo,
um desapego da realidade mas que não nega a experiência como alicerce da
escrita. Aliás, a escrita é ela própria, neste contexto, uma experiência
quotidiana. Nota-se, é verdade, uma má relação com o exterior, uma má relação
que não resvala numa negação, antes pelo contrário, resulta numa exaltação da
dor interna provocada pelo que provém de fora. O efeito é também aqui o de
denúncia de um mal-estar e daquilo que o provoca. O leitor como que é levado
a crer numa necessidade de distanciamento do mundo, numa espécie de
taciturnidade, nunca concretizada. Daí, talvez, o desconforto. Mais que uma
interacção com o mundo há uma reflexão crítica acerca dessa interacção, de
como ela resulta no texto, há uma interrogação sobre a forma como a linguagem
capta ou até onde logra captar essa mesma interacção. Pode parecer que Silva
Carvalho se coloca na posição do sábio autoproclamado, o anacoreta que, em
posse de herméticas verdades – mesmo que sejam elas a da ausência de verdade
-, se arroga no direito e no dever de profetizar a estupidez do mundo,
revelando o que os demais não vêem, e de censurar o mundo por este não ver
nele esse tal profeta que só ele sabe que é. Mas essa atitude faz parte de um
jogo que é, talvez, o que de mais poético tem esta porética. |
CYPRESS WALK Em
Cypress Walk
ou No Fim o Começo o poeta Silva Carvalho (n. 1948) reúne mais três
conjuntos de porismas da sua obra porética.
Antes de mais, pensando no leitor desprevenido, esclareçamos estes conceitos
de porisma e de porética. No
n.º9 da revista Nada, em ensaio intitulado O Livro Porético, Silva Carvalho diz ser o porisma uma
substituição da palavra poema no contexto da linguagem porética.
Esta linguagem materializa-se numa escrita contínua, independente do chamado
“momento de inspiração”, espontânea, um «quase impulso», mas longe de se
subsumir nos automatismos da escrita automática: «a Linguagem Porética sempre concedeu à linguagem a sua quota-parte de
liberdade e o seu estatuto de revelação da inexistência através da irrupção
do disparate ou do inarticulado (Estética da Estupidez)» (in Nada n.º
9, p. 55). No entanto, mais que uma entrega da escrita às forças irracionais
do corpo, há na linguagem porética uma entrega do
corpo às forças da escrita. Resulta
este processo numa espécie de escrita diarística, onde vimos confundirem-se vida e escrita, literatura e pensamento,
corpo físico e corpo mental. O leitor é colocado na posição inconfortável de
quem entra no corpo de um homem através das palavras que esse corpo debita
(produz), porque aqui a confusão entre a palavra e quem a enuncia é de tal
ordem que, quase sempre, somos levados a não estabelecer entre ambos qualquer
tipo de fronteira. Podemos falar desse desconforto imaginando alguém que,
pela leitura, é induzido a uma espécie de hipnose que consiste na assumpção de uma existência que, não sendo concreta
porque é já palavra, também não se pode dizer que seja metafísica. No
fundo, coloca-se assim em questão a ideia de que «toda a linguagem é
metafísica», provando que sendo-o, também é uma outra coisa, isto é, o
despojamento da experiência física num relato, mais ou menos reflectido, da
mesma. Nos três conjuntos de Cypress
Walk – Chamas, Procuras, A
Coragem (Como Pressuposto Poético) – somos enviados para o tempo em que o
autor foi Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, E.U.A.
(1985-89). São porismas escritos entre 19 de Maio de 1986 e 12 de
Abril de 1988, marcados por sensações dolorosas, de sofrimento e de tristeza,
que se resolvem em dois planos distintos: um esvaziamento obstinado e
obsessivo das expectativas – «Tudo se escreve e inscreve na página branca
/ do livro que nos é: pena que ninguém saiba ler / o mistério que se esconde
no nosso corpo!» (p.57); «E porque a experiência é minha e única, /
compreendo muito bem que não tenha leitores.» (p. 153); «ler-me, / às
vezes, é tão penoso que compreendo muito / bem por que não tenho leitores»
(p. 220) –, a afirmação da coragem enquanto tábua de salvação de um homem
cuja vida se confunde com ir «escrevivendo». Esta
coragem é pois tanto um pressuposto poético como um
pressuposto para a vida: «Conheço na carne a ambiguidade, fi-la estética /
como qualquer um outro, não é um estádio avançado / da consciência humana, é
o preço que se paga, / que se tem que pagar, quando se ousa o desconhecido»
(p. 189). Desengane-se, porém, o leitor que julgar esta porética
sob o prisma dos julgamentos amiúde praticados sobre uma qualquer poética.
Neste caso, a predisposição do leitor terá de ser outra. Ele encontrará
olhares sobre o mundo de fora (televisão, consumo, carro, mulher, filha,
referências a canções, escritores, situações de trabalho – «A pedido de
sua viúva revejo provas / da Poesia I de Sena») servindo de
pretexto para o porisma, monstruoso corpo, metade poema, outra metade
sofisma, onde a rotina da vida adquire um reflexo, quase como se o porisma
fosse um espelho de um momento, de um instante, que é aquele em que as
palavras surdem desse lugar obscuro e desconhecido do corpo escrevente. No
primeiro dos conjuntos há palavras grafadas em maiúscula, com destaque para a
palavra Nada. A epígrafe
de Robert Lowell – «Only a nihilist desires the world / to be as i tis, or much more passable.»
– apenas induz o que o autor confirma:
ESCATOLOGIA Literatura, literatura, para
quê tanta lixeira, dizia Joyce. Sartre
escreveu mesmo uma defesa dos intelectuais, bem
precisam coitados. Um prémio de mil contos é
dinheiro, diz a senhora professora, e
depois … Sim, depois … (Lembro o
Pessoa, daquele poema tratando severamente a metafísica!) Depois, tudo é
literatura. Quando se pensa pensa-se o
que se pensa. A ideologia por detrás de
tudo isso. (Mas porquê esse tudo a
aparecer cada vez mais nestes últimos textos?
Pergunta ao futuro estudioso disto.) E
quando não é, é ainda pior, é a estupidez, a
sobrevivência, já dizia Marx, de velhas ideologias. Mas porquê literatura? Dá
gozo, replica alguém, (e eu incapaz de enfiar
algures um ninguém!), dá prestígio, diz-me a vozinha
do lado, não, o poema de circunstância
tem geralmente outras características, outras
aptidões, trata-se simplesmente, dirá a
professora doutora, de um poema, digamos, mau. A literatura, a boa, liberta,
quero pensar. A má,
prende. Era isso mesmo que queria, giro eu em volta da obsessão,
vender livros, ganhar algum dinheiro com um
emprego do tempo honesto. Mas para isso. Pois é. É
preciso ser-se medíocre, ou ser um poeta
feliz. Aquele que no seu tempo nada
diz, ou diz o que convém ao leitor sentir
que está a ouvir. Literatura, literatura.
Atura, e aguenta! Silva Carvalho, Cypress Walk ou No Fim O
Começo, Edições Aquário, Sintra,
Março de 2007. 02-09-2007 |
NEW ENGLAND Silva Carvalho Edições Aquário: Mem Martins, 2002 Não é problema nem do clima, nem de
especial tendência para a simpatia: julgo que a promoção circular de alguns
nomes da literatura portuguesa se justifica em parte pela rectangularidade do
país, expressa geográfica e mentalmente. Teoricamente, um pequeno país terá
uma pequena comunidade de consumo cultural; e deve-ria
ter um panteão poético também diminuto (do grande número de poetas ou
escritores só podem queixar-se os escritores sem génio, com medo que as
migalhas de atenção dos leitores, editoras e com-padres
críticos se desviem rapidamente de si); e se me respondem que a Holanda
também é pequena (e ainda mais), o que é facto é que Portugal é e sempre foi
(e vamos a ver se será) uma espécie de Anti-Holanda
em tudo: trabalho vs. laxismo, responsabilidade vs. mínimos obrigatórios; consciência vs. culpa;
grande mercado cultural vs. os 2000-3000 compradores
conscientes e habituais de livros. Simultaneamente, aquilo que faz um grande
país (integração da diferença e da opinião contrária, como há dias se podia
ler numa crónica), Portugal têm-no ao contrário: persegue os seus génios e
depois de mortos coloca-os no Olimpo. Há muita sexta-feira santa para um
rectângulo tão pequeno. Vem tudo isto a propósito de NEW ENGLAND,
novo volume de poesia de Silva Carvalho. João Urbano alerta na contracapa
que, justamente, não se deve confundi-lo com Armando Silva Carvalho (segue-se depois um jogo de
oposições entre ambos, glosando endeusamento e excomunhão, com um implícito
entre valor próprio rejeitado e ausência de valor, e que este vosso servo,
como leitor de ambos, não subscreve). Vamos distingui-los apenas. Mas o
alerta está dado porque já a obra anterior de Silva Carvalho era um alerta
contra a manutenção do mesmo que Portugal gosta de fazer. E porque NEW
ENGLAND é um título-arma que quer apontar a perda de identidade cultural, por
um lado, e a criação de um universo pessoal regulado pelo valor intrínseco
das coisas, regulado na utilidade até da sua beleza, que corresponde a um
certo imaginário tido do que é inglês. Curiosamente, Madame de Staël afirmava-o, opondo ingleses a alemães: “Les Anglais veulent
à tout des résultats immédiatement applicables, et de là naissent leurs
préventions contre une philosophie qui a pour objet le beau
plutôt que l’utile” (os
Ingleses desejam resultados imediatamente aplicáveis, donde nascem as suas
prevenções contra uma filosofia que tenha por objecto mais o belo do que o
útil – tradução nossa). E sem dúvida que contra o pior do funcionamento do
país literário nacional, Silva Carvalho aponta-o com sorriso escarninho: “Eis
a novidade do gesto, culturalmente/ falando, escrever-se sem que não haja/
nada para dizer. Nunca o ocidente viu tal coisa (…). Porque quem escreve/
ignora. Escrever desta maneira deixa/ de ser uma acção para se transformar
num lugar. (…) / A estética vive ausente. A leitura jaz/ destruída como um
acesso do excesso/ que se destitui no insignificante apelo/ de si mesmo. Que
se está a dizer? Mas/ nada, ora essa! E no entanto, apesar/ de tudo, este nada nasce dizendo-se…” (pg.
46). Ilha, separada de tudo, esta poesia que ironiza
sobre a própria solidão em termos absolutos, quer
ela signifique incompreensão, disfunção perante as regras deste mundo,
sarcasmo sobre a sociedade, análise do quotidiano mínimo: “A conjuntura
presente: dor em toda a parte,/ o corpo disfuncionado,
a mente medindo/ meticulosos mecanismos do medo, mitri-
/ dática maneira de se sobreviver ao caos./ A tarde
chuvosa e insignificante, o sentido/ destituído (…)/.
O deserto possível/ da analogia indiferente à chuva que chove,/ que se
procura provar? Que nada é ficção,/ que tudo é realidade, até a realidade
viva/ do nada. Que é agora. Uma dor substancial/ colando-se à hora da escrita
mitridática.” (pg. 71). Ou ainda: “Na história do homem, é claro. Homens/ e
mulheres não são mais do que homens/ e mulheres, nada mais há antes ou
depois,/ nada mais há aci-ma ou abaixo.” (pg. 192). Quotidiano, ironia, teoria, ironia,
meditação, auto-ironia, confessionalidade, inovação
conceptual ou vocabular, quotidiano, confessionalidade,
conclusão (em sarcasmo, glosa, intertexto ou apenas remate da ideia de
poema): eis a estrutura (aliás, impecável) da maior parte destes poemas em
jeito discursivo muito próximos de Jorge de Sena (como apontou João Urbano),
mas, palidamente, ecoando também as construções perfeitas de desconstrução conceptual
de Alberto Pimenta. Arma de análise e purificação, é o real que visita o universo desta poesia, como “as
temperaturas introduzindo/ em New England outras
paragens/ do que é a terra” (pg. 193). No país quotidiano do poema, Silva
Carvalho viaja. Pedro Sena-Lino |
MEDIOCRIDADE Silva Carvalho Edições Aquário: Mem Martins, 2003 “The idea of an
avant-garde in literature seems unduly naïve today. Inured to crisis, we have
lost the confident sense of direction. Which way is forward?” A afirmação é de Ihab Hassan, e deixa bem
clara a situação da história e da crítica literárias
perante cada objecto novo. Sem um senso directivo, com a direcção
periodológica assente numa história literária feita de avanços e distensões,
o momento actual é estranho: lemos hoje com as armas de ontem, e os maiores
riscos em que incorremos prendem-se justamente com a incapacidade de pesar o
novo nas suas devidas proporções. Questão que já tinha preocupado Hans Robert
Jauss, na sua Teoria da Recepção. O escritor está
no seu tempo mas escreve (para) fora dele. “Não ser daqui traz-me/ toda a
estranheza de ser, faz-me sentir/ a possibilidade como possível e redentora,/
o mundo aberto à generosidade futura./ Não, nenhum pensamento adverso/ vem
perturbar este sigilo e esta alegria,/ esta sensação de uma presença que/ se
perpetua no que repercute/ na consciência do inefável momento.” (pg. 111). Estas mínimas considerações vêm a propósito do novo
livro de Silva Carvalho, Mediocridade. Um percurso marginal (ou seja,
fora do cânone – figura conservadora e preservativa, resquício cortesão), de
uma extrema coerência teórica, figurativa, identitária. O discurso de Silva
Carvalho não é contra o sistema (porque, como nos diz a história de todas as
coisas, o discurso contra mais não é que um discurso dentro);
mas situa-se numa esfera de combate com o real, em que a linguagem mais serve
como espaço de pergunta e questionamento. Ou seja: não há a obsessão realista
actual (geralmente filha da incapacidade do real), nem um discurso
identitário balizado por preocupações externas, e ainda menos uma poesia do
absoluto. Não: a língua poética de Silva Carvalho demora-se, imperturbável,
numa sequência de poemas inconcisos,
permanentemente questionantes, percorrendo na mesma
largura a ironia e o desespero: “Nem comédia nem tragédia, nem sequer/ um
romance, mas a sucessão dos dias,/ a sucessão das horas, a sucessão dos
minutos,/ a sucessão dos segundos, o segundo,/ agora, agora, respirar e sentir,
respirar/ e viver, agora, sempre agora, realidade/ perceptiva de quem escreve
o que se passa,/ o que acontece, estar aqui, isto, isto,/ este passar
passando enquanto o olhar/ vê, o corpo intui, os dedos tocam as teclas/ de um
piano linguístico (…). As palavras fluindo estrangeiras delas/ mesmas nelas
mesmas introduzindo/ a familiaridade de um estar, de um estar/ sendo, de um
estar vivendo quanta força/ é respiração e consciência, a consciência/ de que
isto não pode durar para sempre, (…) (pg. 61). A mediocridade é precisamente o lugar deste combate:
não da obra consigo, mas daquilo que a obra pergunta, como espada de Dâmocles
sobre o real e o mundo; é o jogo permanente de valores que esta poesia
ensaia, nos seus “capítulos-dias” (como aponta Gonçalo Furtado na sua nota ao
livro) de um excessivo diálogo consigo: o mundo é medíocre, o real é
medíocre, ou o muro que (n)os divide é que é
medíocre? É aqui que reside a violência desta poesia: na coragem de um
diálogo com uma barreira civilizacional, com tantos braços, rostos e nomes:
valor, cânone, poesia. Pedro Sena-Lino |