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Silva Carvalho

Teoria da Disponibilidade

Porto, Brasília Editora, 1994

 

Teoria da Disponibilidade:

de Silva Carvalho

 

Teoria da Disponibilidade (TD, Porto, Brasília Editora, 1994) prolonga e desloca O Princípio do Eco (PE) (1).

 

TD prolonga PE porque há todo um feixe de modulações sobre o impoder da voz com novas sequências (onde se destaca a p. 58, inteiramente "disléxica", nas suas falhas do falar estruturador do discurso). Mas o que era exibidamente medular em PE, aqui parece-me mais subterrâneo, para eclodir a «disponibilidade". Disponibilidade para quê, ou para quem ou para onde? É aqui que há um deslocamento, configurado em dois aspectos.

 

Primeiro aspecto. Resumiria em duas passagens (que são deslassadas no final do livro). "Não faz sentido fazer sentido" (59); "[...] quando aceito a dádiva do dizer, / a experiência do que nunca, / possivelmente, teve a oportunidade de ser sentido. / De fazer sentido. [...]» (84). (Existem outros ecos internos do livro: por exemplo, a p. 47 parece responder – "nada se alcança" – à p. 43 – "chegar, mas chegar onde?". Mas estes ecos, e outros, podem ser por ora condensados naquelas duas passagens.) Não faz sentido fazer sentido e estou disponível para o que a língua me faz sentir fazendo-me sentido. "E no entanto a humanidade inventou línguas...", exactamente: sentido é o que encadeia desencadeando, é o que está entre essas "duas palavras apenas". Este livro é a invenção de uma língua que faz e desfaz sentido, do sentido e do real, de uma escrita com o real ("Nunca a realidade da realidade. Nunca o sentido do sentido." – porque já não há identidade – paradigma clássico – nem autonomia – paradigma moderno, da escrita em relação ao real). Daí o trabalho incessante na sintaxe (na "ordem"). A sintaxe (suntaxis, sun, "com", e taxis, "ordem") devém toda ela uma parataxis (pará, "aproximação" e "oposição"). A sintaxe devém uma suspensão a-semântica do discurso. Precisamente: disponibilizar o discurso: dis-por, isto é, separá-lo desviando-o. É possível escrever com uma parataxe (no lugar da sintaxe) fazendo sentido? E todo o repto da disponibilidade (da escrita e da leitura: da escrita na leitura, e da leitura/escrita).

 

Mas, no final do livro, a disponibilidade para o sentido passa a estar verbalmente consciente da coincidência com a disponibilidade para morrer "de cada vez num poema" (pois "nunca escrevi para me furtar à morte", sendo possível, a partir daqui, desenvolver tudo isto, relacionando as pp. 52, 91, 94, 98). É nesta coincidência, que ao longo da escrita no tempo se vai disponibilizando, que o livro ganha um contágio iriante extraordinário. Porque aí coincide e deslassa-se o que se teceu: "[...] um prazer tão grande não ter descoberto / nada no nada que se descobre [... J" (91). Que se descobre. Isto é, na senda do nada, não é uma substância residual do sentido o que se desvela, mas o desvio do que não permanece. Passagem do des-cobrir para o inventar. (A este respeito, ler o ensaio de Derrida, "L'Invention de l'autre" (2).)

 

Segundo aspecto. É a revalorização, por deslocamento, da noção de "Teoria". E aqui através de dois procedimentos: da resistência à teoria (a uma determinada concepção da "teoria"), por exemplo nas pp. 56 e 81; e da ironia para com a teoria (de um tipo de ironia que já não é romântica, por exemplo, p. 95). Era preciso ver agora que "resistência" e que "Ironia". Mas para já vislumbro que "deslocamento". Eu penso que se opera um movimento da mesma índole – a um tempo linguística e civilizacional – que o testemunho do "Fragmento 4" de Da Estupidez (3). Se aqui se tratava de deslocar o pejorativo, agora trata-se de deslocar o discurso conceptual, alargando-lhe as ressonâncias e as interferências num cruzamento incessante de discursos sem privilégios ou hierarquias (fazendo, igualmente deles, "um momento ou um motivo de criatividade»). Não é só o mimetismo de repetir que não há «linguagem poética", é o facto de a porética praticar o cruzamento e a deriva inauditas de todos os discursos que advém à fala.

 

Um terceiro aspecto, a ser estudado em detalhe, seria o de relacionar os dois precedentes. Que teoria da disponibilidade, isto é, depois de se compreender qual a ordem dos significados deslocada pela disponibilidade, e qual a ordem dos significantes deslocada pela teoria, tratar-se-ia enfim de ler quais as formulações concretas para uma "teoria" disponível, e para a disponibilidade à "teoria". As páginas anotadas penso que são o ponto de partida, porque o que interessa é ler o que emerge como irredutivelmente do autor (independentemente de, aqui e ali, se poderem ler assimilações transformadas de tal ou tal "teoria" – e nisto, resolutamente, Silva Carvalho se distingue de um Antero). (Entretanto, é discernível uma "teoria ambulante da leitura", onde se frequenta o texto mais do que se interpreta, com constantes injunções ao leitor para se levantar e consultar o dicionário – p. e. : p. 96 -, assim como outras injunções mais discretas. Por isso lhe correspondem, na «teoria ambulante da escrita", como autênticos alicerces do discurso, aquilo que eu chamaria, provisoriamente, "didascálias para um solo sem encenação , como se o eu de enunciação balbuciasse e se fosse certificando de uma presença que impermanece, cirandando-o – é um verbo que neste livro aparece nevralgicamente – pelo discurso: são as constantes auto-indicações, que se ampliaram e complexificaram: "digo-me", "penso", "sinto", "sussurro", "replico", «ouço-me dizer", "pergunto", "sorrio", "surpreendo-me", etc.).

 

Um outro aspecto, porém este é dos que menos aprecio, é aquilo a que chamaria o "bordão dos significantes". Em certos momentos, Silva Carvalho apoia-se no «emaranhado das palavras", dando a sensação que, no esgotamento total do poder identificador e compensador da linguagem, apenas restasse como esteio um reenvio infindo de sonoridades de palavras para palavras (é certo que não são calembours puros, cuja origem fosse discernível para lá da superfície, mas ainda assim, por vezes, é devedora de uma prática do calembour, que é, penso eu, ainda um momento de negatividade da desconstrução da linguagem e, nalguns casos, como bem observa Deleuze (4), está ainda à procura de um primeiro princípio, à procura de restituir, pela fixação/desconstrução dos significantes, um "princípio no princípio" – e isto é muito menos interessante do que o trabalho na sintaxe e o cruzamento dos discursos, onde se parte sempre "a meio" do verso. Cf., p. e., 60, 61, 85).

 

NOTAS:

(1) Porto, Brasília Editora, 1993.

(2) in Psyché, Paris, Galilée, 1987

(3) Do mesmo autor, Porto, Brasília Editora, 1988.

(4) in Dialogues [com Claire Parnet], Paris, Flammarion, 1977.

 

Tomás Maia, 16.2.95 (texto publicado na revista Escritor

 

 

 



 

 

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A Linguagem Porética

Silva Carvalho

Porto, Brasília Editora, 1996

 

A Linguagem Porética

de Silva Carvalho

 

This book should not be dismissed as the potpourri that in one sense it is. For it mixes critical pieces of evaluation, translations of poems, an interview, essays ar theorizing, an explanatory reading or two, and numerous passages relating this book to author's earlier work – both critical and poetic. Whatever unity the book possesses lies, to a large extent, in the author's single-minded intention for it: it is, at its best, insistently heuristic.

 

The essential worth and significant contribution of A Linguagem Porética lies as much in the author's eye and ear for good literature as it does in his intelligent way of thinking about literature. If it seems natural for Silva Carvalho to theorize about what the writer does when he writes and publishes or about what the reader does when he reads such literature, it seems just as natural for him to serve as a cicerone to books and texts not always as well known or as widely read as he thinks they should be.

 

It is in his capacity as informed and intelligent cicerone that 1 choose to approach his own writing in A Linguagem Porética. Even to students of modern American poetry it will come as a pleasant surprise to see him championing poets he has discovered not by following the lead of critics and scholars but through his own inner-directed reading. Indeed, if one resurrects David Reisman's tripartite division of American character as "other-directed," "tradition-directed," and "inner-directed", any reader of Silva Carvalho's book can readily see that neither of the first two terms applies to him. He eschews both the well-worn paths of tradition and the newly worn ways of fashion in favor of making his own, sometimes lonely, way. Hence under the guise of considering the poetry of Robert Lowell, Silva Carvalho discovers the long career and the notable poetic achievement of the still-with-us Hayden Carruth.

 

Following the example of the modern Portuguese he seems most to have admired and emulated, Jorge de Sena, Silva Carvalho records his discoveries with a narrative of "what, when and how. "That is to say, he sets down the circumstances surrounding his discoveries and the detailed sequence of his deepening appreciations. This reader of poetry, again like his Portuguese mentor, does not efface himself before the poets he reads and admires. On the contrary, the synergy of this work of criticism emanates precisely from the author's fidelity to his awareness that the vitality of literature depends on, the drama of the two-way flow between reader and writer. Immersing himself in the work of a poet neither the literary histories nor the quarterlies have singled out, he achieves a singularly original relationship with the poetry. But that is not all, for he also must do justice to Carruth's own not inconsiderable critical ability, which metonymically, in this case, means taking the measure of Carruth's own understanding of Robert Lowell's poetry. It works: Carruth examines Lowell's poetry and Silva Carvalho looks at Carruth's examination critically (and admiringly). The trick that is pulled off is that one gets a good sense of what all three principals – Lowell, Carruth, and Silva Carvalho – are all about.

 

The beat goes on. Reading Carruth's fine anthology, The Voice That I, Great Within Us, Silva Carvalho discovers William Bronk. He begins his introduction to Bronk and his poetry by pointing out that he is certain that Bronk is an American poet completely unknown to the Portuguese, including those who devote themselves to twentieth-century American literature. This is entirely fair, of course, for, as he himself admits, Bronk is not widely known or studied in the United States either. Rather than trying to analyze or explain the pessimist Bronk's rationally philosophical poetry, he wisely provides translations of ten or so poems. These translations are matched with translations of poems or parts of poems by Wallace Stevens, Robert Lowell, and Hayden Carruth himself.

 

When Silva Carvalho turns to modern Portuguese literature, interestingly enough; he does not discover any unduly neglected poets like the Americans Carruth and Bronk. But he does take the measure of what he considers to be the inflated reputations of minor poets such as Herberto Helder, António Ramos Rosa, and Eugénio de Andrade. Each of these poets, exemplifying in some form or other a Bloomian anxiety of influence, fails to emerge as a strong poet in his own right. For this critic of poetry, the mo great twentieth-century names are those of (predictably) Fernando Pessoa and (perhaps not so predictably) Jorge de Sena. The above-mentioned poets' cardinal sin, charges Silva Carvalho, is their individual failure to face and overcome what he calls the problems inherent in the powerful legacies of Pessoa and Sena. Sena himself faced successfully the problem Pessoa posed for him. Not surprisingly, he emerges as Silva Carvalho's chosen mentor. In fact, Sena's intriguing novella, O Físico Prodigioso, given the fullest academic attention in A Linguagem Porética, is given a close reading focusing on the almost indistinguishable themes of sexuality and eroticism. A second essay on Sena, arguing that he should be re-read as a post-modernist, has the virtue of being responsibly provocative.

 

Arguing soundly against the poem as final, polished, rounded off (perhaps even autotelic) creation, Silva Carvalho comes out loudly, if I read him accurately, in favor of poetry as process. He might say something similar about fictional and non-fictional prose. At its best his work exemplifies what the great nineteenth-century American thinker and poet, Ralph Waldo Emerson, called for – not the work of a man of thought but that of a man thinking. Or, to adduce the words of another of Silva Carvalho's favored modern American poets, Wallace Stevens, who called for "the poem of the mind in the act of finding what will suffice." Silva Carvalho himself might be post-modern enough, I suspect, to expand the meaning of "poem" in Stevens's fortunate aphorism to cover all texts and most writing.

 

George Monteiro, texto publicado na revista

Portuguese Literary & Cultural Studies – Fronteiras / Borders, nº 1, 1998,

Center for Portuguese Studies and Culture, University of Massachusetts  -  Dartmouth.

 

 

 

 


 

 

Silva Carvalho

A Linguagem Porética

Brasília Editora

 

OUTRA COISA

 

Haverá algum anacronismo na miscelânia que Silva Carvalho intitulou de "A linguagem porética" (Brasília Editora) e que reúne diversos ensaios e traduções (Wallace Stevens, Robert Lowell, William Bronk, Hayden Carruth).

 

Contudo, chamo a atenção do leitor para o ensaio "Uma poesia sem poetas" que se orienta pela contestação a Eugénio de Andrade ("um poeta pós-simbolista retardado" da "musicalidade há muito perdida"; pág. 40), a Herberto Helder ("como poeta mais não fez do que perpetuar a tradição encetada por Platão, a de um centro, a de uma origem, esse mundo anterior da ideia e da beleza e da perfeição"; (pág. 41) a António Ramos Rosa ("um poeta modernista retardado"; pág. 48).

 

Estas afirmações são sustentadas de acordo com fundamentação de alinhamento teórico de diferente postura da adoptada pela crítica nacional (mea culpa) e que enriquece a discussão, contrariando o enquadramento idêntico, repetido, laudatório que tem recepcionado qualquer escritura menor dos grandes poetas.

 

De sublinhar o ensaio sobre Jorge de Sena "Sexualidade e erotismo em o físico prodigioso".

 

Penso que o equacionamento de interrogações encrespadas e drásticas de Silva Carvalho (nasceu em 1948, autor de, entre outros livros, "Pentalogia americana: "Da Estupidez"; "Adivinha: Estilicídio e encíclia"; "Nem prosa nem poesia outra coisa"; "Em questão"; "O presente, a presença" e de "Trilogia porética: "O princípio do eco"; "Teoria da disponibilidade"; "Crítica das representações", editados de 1988 a 1996) sobre esses nomes, independentemente de certo centrifugalismo pessoal, impõe-se numa altura em que a crítica é o que é (nas cambiantes passivas, exorbitantes), em que assistimos à destruição de edições de livros que estiveram ni index de Salazar pelo máximo lucro (ainda uma censura selectiva, silogística de dogmatismo de motif político), em que se silencia sobre todos os autores não rendibilizados pelos lobbies (como os definiu Carlos Candal), em que se premeia os premiados, em que as homenagens são assoberbantes, em que se perfilha proveitosamente uma oligarquia intelectual medíocre, etc., etc., é de incentivar outra coisa, outra consciência cultural, a indignação.

 

José Emílio-Nelson in Leituras  

Jornal de Notícias  de 14  Agosto  de 1996

 

 

 


 

 

Silva Carvalho

A Linguagem Porética

Brasília Editora,

 

 

Não existe criador literário mais injustamente ostracizado, silenciado, pelo nosso (português) sistema literário, que Silva Carvalho (n.1948 e que publica regularmente desde 1977).

 

Não confundir com Armando Silva Carvalho. O primeiro é um poeta superior, embora seja o segundo a ser amaciado e louvado pelo meio literário. O que revela bem dos seus complexos, da sua estreiteza e afecção. Ou segundo Silva Carvalho: "Ninguém, é o preço do silêncio a que sou votado desde sempre. como um incessante desconhecido... Assim nunca mais terei leitores Pátrios." Silva Carvalho é só, aparentemente, um autor difícil. A desconstrução, o quotidiano e a revolução, permanentemente se enrolam na sua poesia, cujo personagem principal é ele próprio. Há uma irrisão da ficção a favor do real. E Jorge de Sena é talvez a sua influência mais forte. Até na sua relação poemática com a música, com o real e com o Humano. Igualmente se intromete no Romance com o anti-Romance "Palingenesia", altamente autobiográfico. Silva Carvalho também é um criador de conceitos como a "catacrese", "porismo", etc., que semeia nos seus livros, em especial de poesia (aí reside o essencial de sua produção literária). Um dos seus momentos mais brilhantes e desconcertantes, foi conseguido no livro de ensaios

"A Linguagem Porética" (1996, Brasília editora), aonde se abate, sem cerimónias sobre a dita qualidade excepcional dos nossos poetas da segunda metade do Séc. XX. Em especial. ataca a trindade imaculada, Eugénio de Andrade, Herberto Helder, e António Ramos Rosa, e a tudo que representam de espasmo órfico, remetendo-os para a classificação pouco lisonjeira de ultramodernistas. Finalmente, alguém os sacudiu do podium. Mas mesmo este seu talento de polemista ou de provocador, foi, nesta terra de asnos e sopeiras, reduzido a zero, anulado, numa espécie de conspiração do silêncio (não premeditada, o que a agrava). Fazem de conta que não existe. O que se torna altamente confrangedor, quando estamos perante um dos mais poderosos e inquietos criadores literários dos últimos 30 anos em Portugal. "A tarefa, disse-o tantas vezes, e disse-o humildemente, é imensa. Não só mudar o mundo, que se transforma todos os dias, mas mudar a mudança" ("O Romance Contemporâneo", Tertúlia editora). Em suma: um enorme poeta.

 

J.J.Urbano in Número Magazine 

n.º 11 de Novembro Dezembro de 2001

 

 

 


 

 

 

Silva Carvalho,

A linguagem Porética,

 

O CASO SILVA CARVALHO

 

 

É impossível abordarmos os escritos de Silva Carvalho sem um preâmbulo. Trata-se, com efeito, de um autor português que publica de maneira regular desde 1996, ou seja, há 28 anos, sendo ignorado (com as excepções da praxe) pela crítica literária. Entre 69 e 96 publicou dezanove títulos, de poesia e ensaio; o primeiro em edição do autor, os restantes em cinco editoras, a maioria dos quais na Brasília, do Porto.

 

Não é só o caso de Silva Carvalho que revela a indigência da crítica literária em Portugal, visto outros casos igualmente eloquentes a atestarem (os de Manuel da Silva Ramos e Alface ou de Alberto Pimenta, por exemplo). Mas é importante referi-lo, tendo em conta a quantidade de publicações (e até “espaços televisivos”) onde esta famosa crítica é regularmente exercida por uma pequena multidão de profissionais, especialistas e exegetas. É importante porque isto nos põe perante a certeza de uma verdadeira nova censura, hoje decorrente de factores menos obviamente políticos e mais difusos mas nem por isso menos concretos.

 

A indiferença manifestada perante os escritos de Silva Carvalho só pode explicar-se pelo conformismo que governa o jornalismo literário e também pela decomposição que nele lavra. Não é seguramente porque as obras deste autor sejam desprovidas de interesse, visto a actividade de Silva Carvalho se mostrar fecunda, expressiva e vivificadora – independentemente de concordarmos ou não com ele.

 

O seu último livro publicado é uma colectânea de ensaios e de traduções de poetas norte-americanos contemporâneos, prestando-se, graças às explicitações que carreia, a uma exposição mais clara do CASO SILVA CARVALHO nos seus dois aspectos mais notórios: o de autor ignorado e o de escrevedor com uma prática de ideias próprias – afirmando-se, nesta prática, a arrepio do consenso estabelecido entre nós a propósito da arte poética.

 

Na esteira do post-modernismo norte-americano, que se expande a partir dos anos 60 e no qual Silva Carvalho se reconhece, este autor foi introduzindo na sua actividade elementos constituintes tendentes a pôr em causa o estatuto corrente da arte literária e as ideias que o sustêm.

 

Para começar, a própria noção de arte. Insistindo no carácter autoformador do texto poemático, nas suas características pessoais e contingentes, elabora-o como algo de confessional e reflexivo, e sobretudo de espontâneo e sincero, retirando-lhe a armação oficinal e a aura metafísica. O poema só se escreve uma vez, não sendo a sua imediaticidade alterável, visto tratar-se de uma expressão directa da vida, da experiência vivida na sua qualidade de testemunho circunstancial preciso. Por isso os poemas de Silva Carvalho surgem sempre datados, com dia, mês e ano, sendo muitos deles acompanhados de notações imediatas e biográficas nas quais o autor se debruça reflexivamente sobre o que acabou de escrever, mostrando nisso uma perplexidade atenta.

 

Depois, e correlativamente, Silva Carvalho defende o que chama uma estética da imperfeição, assente na precariedade do pensamento e, no seu modo operatório, alicerçada numa tautologia (remetendo para a imprevisibilidade), numa assunção do parêntesis (abertura de espaços) e num reconhecimento do carácter babélico ou meândrico das línguas agindo sobre a língua em operação de descoberta, sendo o carácter ocasional do escrito o seu suporte.

 

O corolário desta experiência é aquilo a que Silva Carvalho chama uma poesia sem poetas, remetendo-nos para a divisa estratégica de Lautréamont segundo a qual “a poesia deve ser feita por todos, e não por um” – ou seja, dixit Silva Carvalho, “feita pelos homens e pelas mulheres finalmente despidos de quaisquer atributos que os possam distinguir do resto da tribo, mas dados à fascinação das línguas como lugares onde se desenvolve um permanente diálogo, por elas estabelecido, com a realidade, dando origem a falas e a dizeres, e à prática da escrita enquanto ‘autovalidação’ e ‘autocriação’ (…)(A Linguagem Porética, p.43).

 

Os textos de Silva Carvalho, cuja pulsão deriva de uma reflexão sobre o homem individual no tempo, apresentam-se eivados de acção filosófica, constituindo um filosofar permanente do escrevedor em busca do seu lugar nas circunstâncias que procuram delimitá-lo – e, no seu caso, que o isolam do convívio humano ao inscrever-se numa loucura, a da interrogação que rejeita o adquirido. Uma das questões centrais que o nosso autor incisivamente aborda, em especial na sua análise da poesia contemporânea em Portugal, é justamente o inaugural logocentrismo de Platão, a metafísica por este instaurada acerca de um centro e de uma origem de cuja matriz tudo decorre e que tudo modela, opondo-lhe, apoiando-se sobretudo em Heidegger, “a necessidade de se acabar de uma vez por todas com a opressão inerente a qualquer ideia de forma, de pureza, de bem feito, que subjazem à do domínio (de uma técnica capaz de assumir e ganhar o papel de arte)” (Idibem, p.37). As passagens sobre a poesia de Eugénio de Andrade, Herberto Helder e Ramos Rosa constituem sem dúvida uma reflexão muito séria, embora problemática, ao caracterizá-los como “poetas pós-simbolistas retardados”, ou seja, pré-modernistas, sublinhando o papel do metaforismo exacerbado como expressão típica do poeta impessoal, deus ex machina, criador duma realidade instaurada no texto.

 

Se remetermos isto para a recepção desta criticada escrita, veremos que Silva Carvalho toca numa questão muito característica da poesia em Portugal, sobretudo se tivermos em mente os epígonos daqueles três autores, porque a verborreia metafórica que os epígonos do lirismo produzem, com desconcertante facilidade, descamba no puro artifício, incorpóreo e doentio, duma linguagem sem significação a não ser a de um belo estetizante e amiúde cabotino, que por sua vez é expressão de uma falta de pensamento, de uma ausência de personalidade.

 

Ao peso desmesurado do metaforismo e da estética que este mantém, Silva Carvalho opõe, longamente analisado, aquele que caracteriza como o primeiro poeta post-modernista português, Jorge de Sena, a que dedica dois ensaios neste livro, detectando na sua obra poética “a temporalidade que remete para uma visão pré-socrática anterior ao logocentrismo instaurado por Platão” (p.29). Opondo, na poesia seniana a noção de representação à de “processo testemunhal” (visto este poeta rejeitar uma arte do parecer). Silva Carvalho vai descobrir no prefácio de 1960 de Jorge de Sena à sua Poesia I um manancial teorético, e nomeadamente a diferenciação por ele encetada perante a sensibilidade do modernismo e o consequente surgimento de uma nova apreensão, a post-moderna: “Há muito de orgulho desmedido nesse ‘fingimento’, que contrasta, quanto a mim, com a humildade expectante, a atenção discreta, a disponibilidade vigilante, com que, dando de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca, como do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso maternal cuidado.” É ainda neste prefácio destacado por Silva Carvalho que Sena escreve: “nunca soube ou nunca quis corrigir um verso ou reestruturar um poema, após o momentâneo acto de os registar ou de lutar pela chegada deles às palavras ou das palavras a eles.” Para além de revelar assim as suas afinidades, Silva Carvalho projecta sobre Jorge de Sena uma nova luz, a de inaugurador em Portugal de uma corrente que só muito depois se torna conhecida, o post-modernismo de génese norte-americana.

 

Nesta nota apenas pretendo chamar à atenção para a importância de um autor silenciado através dos processos nossos contemporâneos de censura. Deixo para outra altura a discussão da poesia de Silva Carvalho (termos que ele não subscreve) – onde para já apenas poderei denotar uma paradoxal dificuldade, resultante por certo da sua novidade mas sobretudo do seu processo, que curiosamente assenta num diálogo com o leitor…

 

 

Júlio Henriques

in Revista Utopia, 5 de 1977

 

Silva Carvalho, A linguagem Porética, Brasília Editora, Porto, 1996, 160 pp. Além de Jorge de Sena, este livro contém textos sobre Hayden Carruth e Robert Lowell, bem como traduções notáveis de poemas de Wallace Stevens, William Bronk, Lowell e Carruth, autores que Silva Carvalho conhece bem.

 

 



 

 

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Palingenesia ou o Estado e o Processo do Romance

Silva Carvalho

Lisboa, Fenda, 1999

 

Palingenesia ou o Estado e o Processo do Romance

de Silva Carvalho

 

Silva Carvalho retrata, em Palingenesia ou o Estado e o Processo do Romance, os anos que passou em Paris como exilado fugido à guerra colonial. A situação precária em que viveu naquela cidade tem um impacto tão forte na sua forma de encarar a vida, que chega a afirmar: «Qualquer coisa de muito grave se passou comigo desde que cheguei a Paris, ou, com os primeiros anos da estadia, perdi qualquer coisa, uma infância, uma capacidade para me extasiar com a beleza do mundo» (p. 106).

 

Visceralmente poeta, Silva Carvalho, tenta com este livro o campo da ficção através de uma autobiografia romanceada. Parecerá um contra-senso tomar o género autobiográfico como ficção e considerá-lo, como é o caso, um romance. Realmente o autor retrata-se a si próprio numa determinada fase da vida. Curiosamente ao longo do livro não aparece nunca o termo autobiografia. Antes o termo romance e, quando muito, o termo memórias. A memória, aliás, tem um papel preponderante, uma vez que o autor relata, no momento em que escreve, acontecimentos de há vinte anos atrás.

 

O livro está dividido em capítulos a que Silva Carvalho dá o título de cenas. De teatro, de um filme? Cremos remeterem mais para o cinema, uma vez que o narrador descreve numa das cenas o modo como se tornou por acidente actor de um filme. A vida em retrospectiva, quebradiça e fragmentária, perpassa ao longa das páginas, como um filme.

 

Difícil portanto, definir o género a que este livro pertence. Autobiografia por um lado porque é o autor a falar de si próprio, remetendo para o real da sua vida como homem e escritor, com referências, por exemplo, aos livros já publicados ou já escritos, ou remetendo para factos da sua vida real. Em certa medida, é um ensaio sobre ideias, quer filosóficas, quer literárias, onde o autor questiona a problemática da vida e da morte, ou tece comentários acerca do cânon literário ou sobre a escrita do romance. É um romance no sentido de que, toda a realidade reescrita, remete para a ficção, uma vez que a linha que separa o que realmente aconteceu do escrito é muito ténue. O próprio narrador o refere: «as palavras, sendo as mesmas, tecem figurações imprevisíveis quando expostas ao acaso da memória e ao arbítrio do tempo» (p. 5).

 

É o livro uma extensa reflexão sobre o que é ser-se escritor de língua portuguesa, onde se referem as vicissitudes, os desaires, a luta pela sobrevivência literária num país onde não há leitores e onde nas letras vence muitas vezes a mediocridade. A intenção deste livro, confessa o autor, era a de chamar a atenção sobre a sua obra poética (cfr. p. 143).

 

A problemática do tempo e do espaço subjaz em todo o livro. Por um lado Paris no início dos anos 70, por outro a recordação cada vez mais nebulosa de Portugal. Sendo uma obra que remete para a memória e sendo o passado depositário da mesma ou, pelo contrário, sendo a memória a depositária daquele, o autor vê-se confrontado com o problema da impossibilidade da recuperação do acontecido. «Diante do passado», diz Silva Carvalho, «resta-nos a idealização. A recriação de vidas que foram sem nunca serem as vidas que lhes queremos atribuir ou impingir» (p. 80). Toda a tentativa de recuperação é uma recriação.

 

O regresso, o retorno ao momento e lugar onde fomos felizes é um desejo igualmente impossível. Impossível porque esse momento e esse lugar nunca existiram: «Regressar, regressar é a íntima injunção, mas onde? E não haver um onde em nenhuma parte do mundo, em nenhum lugar da terra, é como sentir-me novamente a mais (no menos que sou e sinto) e sem solução» (p. 107).

 

Sendo este livro uma reflexão sobre a arte do romance, para onde o subtítulo remete, são frequentes as pausas narrativas em que o escritor aproveita para tecer algumas considerações sobre a ficção, a realidade, a honestidade e a autenticidade literárias. Diz o autor que a única ficção que o atrai é a realidade (cf. p. 116). Essa mesma realidade tem-se ele esforçado por apreender através dos vários livros de poesia que vai publicando. Entende, no entanto, que «escrever-se romance não releva de nenhuma autenticidade» (p. 130). Talvez porque na escrita de um romance tem de haver «uma certa cegueira, uma certa ingenuidade, uma desejável estupidez. Só assim se arquitectura uma história» (p. 40). Chega a duvidar se aquilo que vai escrevendo ao longo deste livro é realmente literatura. «Se é, confesso que não estou interessado, nem na literatura nem em ser literato! Contar, é verdade, concordo, mas o quê?» (p. 105).

 

Palingenesia é, como o dicionário indica, «o eterno retorno», «o suposto regresso à vida depois da morte real ou aparente», o «renascimento». A personagem principal, que nós sabemos ser o próprio Silva Carvalho, era uma espécie de morto-vivo a deambular pelas ruas de Paris entre 1969 e 1975. Perdida a pátria, longe dos afectos familiares, incapaz de trabalhar para o sustento, pois o trabalho braçal, a que estavam condenados os emigrantes, era-lhe dolorosamente repulsivo, deixava-se morrer, chegando mesmo a programar um suicídio físico. Ensaiou-o quando um dia foi convidado por um vizinho a participar como actor num pequeno filme, em cuja última cena a personagem que ele encarnava se envenenava. Mas a saída não estava aí. A saída estava na arte dos afectos, que afinal se encontra latente em cada um de nós e só necessita de ser despoletada.

 

Palingenesia patenteia-se, em resumo, como uma forma de o seu autor se assumir como Homo Narratorius. É recriando pela escrita o mundo e a memória acerca dele que o escritor se conhece a si próprio. «Em certos momentos», confessa, «descobri quem nunca sendo eu fora sem o saber» (p. 240).

 

José Leon Machado, in Projecto Vercial

Junho de 1999

 

 


 

 

Silva Carvalho

Palingenesia

Fenda , 1999

 

INSINUANDO O REGRESSO À VIDA

 

Ocorre dizer a propósito de "Palingenesia Ou O Estado Do Romance" (Fenda Edições), de Silva Carvalho, que preserva a "apetência de escrita" (pág. 146) patente em toda a sua experimentação (situando-se entre o "poético" e o "porético", cf. "Nota de edição" a "Mais ou Menos"). Nessa perspectiva, Silva Carvalho conjuga a parcimoniosa "fala da experiência" "algures em Paris" (pág.s 171,5) com "arrazoados da impotência teórica como especulativa" (pág. 15).

Denegação da literatura em que o sujeito especular constrói uma ficção processual, de desmontagem, insinuando o "regresso à vida", ("outra coisa" que não é ficção), que indicia "renovação, regeneração", ou seja, "Palingenesia": "Isto é literatura? Se é, confesso que não estou interessado, nem na literatura, nem em ser literato!", "não é romance, é história", "mas talvez isto que aqui se vive não seja literatura", restrinjo-me ao essencial do acontecido", "escrever não pode coincidir com essa estúpida ideia ou noção de um inquestionável ainda escrever bem.", pág.s 105, 163, 127, 12, 14. Mas também visualização arbitrária de "cenas" ("escrevo frases deste tipo que não nascem em mim nem me são genuínas" que são pretexto ("a intenção deste livro era chamar a atenção sobre a minha obra", pág. 143) que envolve o autor contra a crítica concentracionária. Apócrifa autobiografia ou uma postura calculada, confessional (Rousseau)?

 

José-Emílio Nelson in Leituras

 Jornal de Notícias, 15 de Julho de 1999

 

 

 



 

 

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75 Sonetos,

Silva Carvalho Lisboa: Solcris. 1985

 

Circular

 

Não há dúvida que o soneto é uma forma poética venturosa, talvez aquela que, para além da quadra popular, é há mais tempo cultivada por mais pessoas. Foram os clássicos, os românticos, os modernos; uns fizeram-no bem, outros mal. E os que o fizeram bem nem sempre foram aqueles que seguiram à letra as regras primitivas. Porque o soneto, mais do que um sistema cristalizado, tem demonstrado ser também uma forma extremamente versátil, ainda que de tal maneira difícil que só muito poucos poetas a conseguem utilizar de um modo adequado, não cansativo, rentável.

 

É este o que me parece ser o caso de Silva Carvalho: nos sonetos que aqui nos apresenta, não respeita a estrutura do soneto clássico (em termos estróficos e silábicos); mas, por outro lado, adopta um esquema rimático tradicional, mesmo que para isso tenha tido que rebuscar - habilidosamente - no seu depósito de palavras incomuns. Ou seja, os sonetos que nos dá são jogos de palavras que dão a volta, sem a trair, à forma clássica - e, por trás destes jogos, outros existem e que os sustentam: os jogos de ideias; e, aqui, o poeta é habilidoso também.

 

Dividindo o livro em três partes («Logos, «Moïra e «Aleteia) e dedicando-o a Nietzche, Heidegger e ao nosso referente comum que são os Gregos, Silva Carvalho oferece-nos um curioso percurso de introspecção enquadrado pela busca do conhecimento, seja ele objectivo (Logos) ou transcendente, como o que regula o destino e a vontade do homem (e que poderá ser representado pelo conceito de «Moïra).

 

Poesia filosófica talvez, difícil com certeza, oportuna sem dúvida.

 

Luís Fagundes Duarte,  in Jornal de Letras

de 24 de Março de 1986

 

 

 


 

 

75 Sonetos

Silva Carvalho,

Solcris

 

 

Com uma dedicatória a Nietzsche, Heidegger e aos gregos, abre-se este conjunto poético de Silva Carvalho.

 

Um acutilante reflectir do Eu na sua relação com o envolvente é o primeiro grupo de poemas que aparecem com o título de «Logos». E esta razão, «exacta medida» tão procurada pelos nossos  criadores gregos, idealiza-a o autor num texto. Passo a citar: «Um texto onde me lavasse da impureza mental,/ com signos tão próximos da terra excruciante/ que fosse possível apalpá-los num gesto tal/ que o texto se transformasse em vida hiante./ Um texto tão simples como a complexa natureza,/ sulcado de rios, de verdes vegetais, de ardência/ insuflada pelo sol quando a verdadeira pobreza/ significa, não a privação, mas conquista, ausência./ Um texto onde se descobrisse a lei e a quididade: reflexo, não de um mim que se sujou de mundo,/ mas daquele que sou quando a nudez da idade/ me abre ao cosmos dando-me um brilho fecundo./ Um texto tão natural que fosse paradigmático:/ exacta medida num destino enigmático.»

 

A escrita surge como uma forma de catarse: «(..., vence o soneto a intemperança,» Aquela que o autor observa quando diz: «Vejo, no ecrã incendiado da televisão perversa,/ a última notícia, rosto de criança, mãe chorosa./ Grassa a guerrilha, farrapos e corpos, dispersa/ dor materializada pela história torva, ominosa./ Mas sinto?/ Tão longe a catástrofe! Quase ficção. Dor, vê-se quanto nos abisma a condição do humano plinto./ Carne para a voragem do poder, eis o que somos./ Títeres escravos, cúmplices laços, secos gomos.»

 

Pensa-se o autor. Sobre si e sobre os outros recaem a ternura e a raiva. A compreensão dos seus fracassos e a denúncia da sua futilidade. Passo a citar: «Memória! Pena estes corpos não produzirem nus./ Ei-los corrompidos pela história. Atordoado,/ visiono a perda. Não merecem o sol, quanta luz/ cai sobre a terra. Procuram apenas o bronzeado.» Ou: «Não é conquista. Nem derrota. É o tempo ovante/ transformando o corpo e a alma a seu talante!»

 

A lucidez escorre destes poemas de pendor filosofante. De um modo inquietante. Daí o autor afirmar: «Quisera viver da pedra o mutismo, a adiaforia./ Invejo a estupidez. Olhar para o mundo, e nada./ Nem uma emoção, nem um sobressalto: calma fria/ onde pudesse esquadrinhar a ironia, camuflada.»

 

Não me alongarei mais em considerandos acerca destes poemas agrupados sob o título de «Logos». Os outros dois grupos poéticos Moĩra» e «Aletéia» que também fazem parte destes «75 Sonetos» exigem-me a sua atenção.

 

Assim, detenhamo-nos nos poemas de « Moĩra »...

«Terrível dizê-lo, mas as palavras exigem guerra./ Não há paz no seio do poema, mas cartas, do jogo/ onde a ausência vem, aparece. O corpo sabe, berra/ imprecações terrenas, revolta-se perante o fogo.», afirma-se e, mais uma vez, surge a palavra como a única e possível apreensão da vida. De um existir em que o autor se reconhece como o criador de impossíveis. Frustre viagem de um cosmos equilibrado em antagonismos. Donde o dizer: «Bela rapariga que vens à janela, quisera, quisera.../ Não é só frustração. Nem realmente desejo./ É outra coisa, é o tempo, é a morte que oblitera/ as transformações no oco, no recesso excruciante!»

 

São agressivos os versos de Silva Carvalho pela nudez com que nos lançam intransponíveis experiências. A do Eu confrontado com a constante fugacidade do manifesto. O pleno de luz e o asfixiamento sórdido. Contudo, no conjunto poético de «Aletéia», escreve: «Exijo mais que um leitor. Compreendam-me: passar sílaba a sílaba pela carne do sonho significa/ mais que devolver ao texto a sua origem. Significa/ sentir, pela primeira vez, a necessidade de amar.»

 

Perante tal confissão do Eu, só me resta desejar que o leitor se sinta atraído por esta escrita. Que a ame. Isto é: que o desejo do poeta não ecoe no silêncio da vossa indiferença.

 

Ana Paula Portugal in Ler/Escrever

Diário de Lisboa  em 14. Maio.1987

 

 

 


 

 

Silva Carvalho

75 Sonetos,

Solcris. 92 páginas

 

 

Não desconfie o leitor: é poesia a sério, não obstante a brancura do título geral, decerto provocatório pela negativa.

 

A estante,  in Jornal de Letras

de 3 de Março de 1986

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Ao Acaso,

Porto, Brasília Editora

 

PAIXÕES

Meditação sobre «Ao Acaso» de Silva Carvalho

 

«Penso, eis-me num beco sem saída»

 

Ao acaso, pois. «Ao acaso do coração», como acentua o poeta. Na indeterminação de tudo, eis o homem, o homem que somos nós, ora numa situação ora noutra situação, agora num lugar, noutro lugar mais tarde. Mas que sentido o do homem no tempo...? Silva Carvalho: «Nenhum sentido, mas a grave necessidade/ em permanecer para sempre sem idade». Quem se der ao cuidado de ler as trezentas oitavas de «Ao Acaso» (todas elas metrificadas e rimadas, o que testemunha labor e busca do homem em sua medida e canto) ir-se-á identificando com os muitos passos do ente humano pelo espaço que o circunscreve.

 

Acredite o leitor de poesia que vale a pena o trajecto por estes dois mil e quatrocentos versos. Dir-se-á: «para ler duma assentada...?» Para que se medite oitava a oitava, para que das partes se ascenda ao todo. Afiancemos, para encurtar razões in­trodutórias, que tal trajecto é um exercício verdadeiramente espiritual - e que só os muito distraídos (aqueles que o senso comum designa por felizes) não entenderão a profundidade dessa errância multiforme que percorre o livro de Silva Carvalho. E lamentável será, que muitas são as perguntas que por aqui definem a condição humana...

 

Assim temos que (...) «um homem distraído/ entre o quotidiano pífio e a viagem» sempre, no doloroso tempo oportuno acabará por perguntar: «Onde está? Quem é? De onde vem?» E a resposta, trágica, surge: «Assim/ recomeça, o brilho, no além, a causa certa.» Ainda na mesma oitava (a III), a ilação que o pensamento extrai para seu próprio esmagamento: «Desfeito pelo desleixo da loucura, enfim/ solitário, de uma solidão breve e esperta/ onde pode respirar a eclosão do fim,/ ei-lo, isento e soberano quando acerta/ sem temor na palavra-chave: distância/ do mundo ao ser, insuperável arrogância». Ora é precisamente o facto de o homem se encontrar num ponto e nas perguntas que formula tentar abarcar um ponto para além de si (ou melhor dizendo: para além das suas possibilidades) que lhe confere o estatuto de ser o único ser da criação capaz (mas que capacidade) de inteligir a noção de beco sem saída. Todos os outros seres vivos cumprem uma geometria simples. Que se olhe para o gato doméstico: do círculo de sol, onde dormitava, ergueu-se e foi­-se em linha recta até aos restos que se lhe deu para almoço. Só o homem (um certo homem), mesmo quando almoça e o sangue se lhe alegra com um pouco de vinho, sabe sempre que se encontra enclausurado. O cogito cartesiano («Penso, logo existo») será por ele enunciado noutros termos: «Penso, eis-me num beco sem saída».

 

O enclausuramento, na acepção trágica e nobre do termo, é próprio do homem que pensa. O homem que pensa sabe que não sabe. Daí Silva Carvalho escrever, na oitava LVI: «Sente o pão diário como um antigo ralho/ quando ser criança significava não saber.» Mais ainda (retrocedendo à oitava V): «Sente medo. Ingénuo sem núcleo de criança,/ avança, um olhar exfoliado, um regaço ledo,/ a incapacidade compondo-se de sol, dança/ onde espera reconhecer a verdade tão cedo/ como uma aurora perdida na esperança./ Mas tudo lhe é adverso. O corpo diz medo,/ o espírito é dicotómico, a alma insegura/ ao ponto de não saber onde é a loucura.» Terrível: o que é, na verdade, o racionalismo? Muito simples é o problema que enclausura o homem (e, porque simples, doloroso como um todo, que não admite uma alteridade fonética, com verbo, com fala): para além do cogito cartesiano («Penso, logo existo»), algo fora de nós, embora não pensando, também existe. Daí a solidão que é o oxigénio do homem, solidão bem expressa na oitava XI: «Ninguém perto. Vizinhos, algures, a realidade/ recolhe-se em si como nó filosófico. Isento,/ percorre e deambula e ciranda a necessidade/ como alto mandatário de um espanto lento./ Que é viver? Que é morrer? Nem a cidade/ governa a desmedida quando descobre alento./ Resta-lhe a ambiguidade, e algum consolo/ no que desfaz severamente. Ninguém é tolo.»

 

Obviamente que o homem (mesmo aquele que pensa) se refugia no quotidiano. Mas este quotidiano, fazendo bem as contas, surge-lhe independente, afastado de si, como se as coisas acontecessem a uma grande distância, com uma vida própria, estranha, nada tendo a ver com quem as contempla... Muitas dessas coisas «coisificam-se», por assim dizer, em recordações, em que o único resquício de vida, de movimento, são simples fenómenos da Natureza que, existindo, não pensam, numa completa indiferença para com o cogito subjectivista cartesiano. Atente-se, por exemplo, em mais uma oitava, a CLXXXIV, que desta maneira se expande: «Jogam à bola num campo improvisado. O asfalto/ deve roer-lhes nos pés adolescentes, a baliza/ são dois calhaus roubados ao pavimento alto./ Nunca foi amante de jogos, paradoxalmente. Pisa/ a recor­dação desses anos, sente como um assalto/ a sua inacção filosófica, viver era ver a brisa/ que passava, o sol que subia e descia, viver/ era sobretudo fingir que a vida podia aparecer.» Face a essa distância de todas as coisas (ou até só de algumas poucas coi­sas, que é o que normalmente acontece ao homem, e aqui reside a sua tragédia enfrentando pequenas parcelas que não se integram na sua totalidade), eis que uma pergunta se lhe põe à flor da sensibilidade. Qual...?

 

Sentir quem é. Leia-se a oitava CCXVIII: «Sentir quem é. Um minuto, um segundo, um lapso / onde o tempo soubesse cingir-se à inclemência / do infinito. Que encontra? Apenas o olhar relapso / daqueles que, como ele, não sabem, na contingência,/ o que fazer da vida. Conquistá-la? Um só ilapso, / mesmo profano, mesmo alucinante, eis a urgência / da sua alma opiante quando o corpo se destrói. / Há quem o compreenda, mas a língua age e dói.»

 

Demoremo-nos no seguinte ponto: conquistar a vida. Mas quem conquista a vida (e agora independentemente da carga dorida da poesia de Silva Carvalho), conquista o quê...? Por entre as coisas muitas do mundo, sempre o beco sem saída nos surge. Por paradoxal que seja, em momentos de grande compenetração, ansiamos mais pela animalidade (num sentido uno, ontológico) do que pelo pensamento que, tido como luz, tudo desmultiplica e nos confunde. Que por um só instante nos limitássemos a ser o que não pensa! Escreve Silva Carvalho em CCXVII: «Uma hora que fosse, para sentir a animalidade. / Um regresso sem fronteiras, um retomo casual / como se ir e vir demandassem uma liberdade / capaz de luz, de nitescência civilizacional. / Tudo tão morto, até a inteligência da idade, / tudo tão poluído como a sensibilidade exicial. / A tautologia grávida de deveres e de revulsão. / Que dédalo para se sair, que caminho para o pão?» Mesmo que consigamos sair do dédalo e compremos o pão, a verdade é que o pão é um objecto exterior a nós, um ponto a que temos de ir mecanicamente, sem fonética, sem verbo, sem qualquer espécie de alteridade. É um objecto que nos desafia: pensamo-lo (porque cartesianamente existimos), mas ele, o pão, embora existindo, não pensa. Logo: não há uma intersubjectividade entre nós e aquilo que nos rodeia. Que não se tome tal asserção por um dislate: é nesta dicotomia, nesta separação, nesta distância, que reside todo o drama da existência humana. Por agora ainda não, tão baralhados ainda nos sentimos: mas um dia virá em que estas coisas serão devidamente tomadas em conta.

 

Poderíamos dizer (e que Silva Carvalho nos permita a breve dissertação se­guinte) que o drama do homem se reveste de duas componentes: o côncavo e o convexo. Explicitando, passemos para a música possível que o raciocínio nos permite. Como...? Encaremos o peixe no aquário. Que silêncio! No silêncio da casa, ele é ainda mais silencioso: só anda aos círculos, muito junto ao vidro, e outras vezes fica-se parado, sem um estremecer, apoiado em coisa nenhuma da água. Seria bom tê-lo entre as mãos, sentir-lhe a humidade, o movimento tocado pelas impressões digitais. Im­possível, no entanto. As coisas que se apetecem nunca nos dão a posse de si mesmas. E é precisamente por isso que as desejamos. Ora o peixe vermelho na concavidade do aquário só nos permite a convexidade do aquário. Se o possuirmos, se nos atrevermos ao segredo côncavo, só nos restará a superfície (sem nada) do convexo. O peixe vermelho será sempre o símbolo da água que só na concavidade reside e nunca revestirá a convexidade. O peixe está para o côncavo como o nosso desejo de o ter está para o convexo. Logo: o contacto entre as nossas mãos e o peixe é uma impossibilidade mútua. Ou por outras palavras: uma impossibilidade ético-física. Só a idealização, abstraindo de toda a materialidade, nos poderá ofertar o peixe vermelho circulando na convexidade do aquário. Logo: teríamos a água no exterior envolvendo o aquário, permitindo o peixe na convexidade deste. E nós, na concavidade por força da idealização, observando o peixe sem morrermos afogados... Então, sim: a nossa mão sairia do côncavo e tomaria o peixe no convexo. Onduladamente, teríamos a alteridade do todo: o homem com o peixe na mão, o peixe na mão do homem.

 

Mas eis termina a impossível música do raciocínio. De novo temos o homem com (CXXI: «o nariz espetado no lençol. Os óculos tira, / coloca-os sobre a mesinha-de-cabeceira. / Onde se propala a realidade? Nada que fira / tanto como saber a perspectiva, a fogueira / onde ardem as bitolas e as medidas. Respira / uma vertigem, um segundo de mundo, a peneira / onde quem é navega e adrega e já resvala. / Que canção mussita, que filosofia cala?» De novo o beco sem saída se impõe - e de tal sorte que, num encolher de ombros, encarando a mulher, o ser pai, a música, os comprimidos, o suicídio, milhentas coisas mais, entra então o homem num compromisso último: (CCC «... Dirá boa-noite, um sorriso / nos lábios. Evoluirá entre as gentes, subtileza / do mistério onde o corpo fingirá um juízo. / Conversará com os colegas, dará as aulas, beleza / das possibilidades humanas. Responderá ao aviso / do destino, patético e lúgubre, pleno de grandeza. / Sente que algo o desfigura, que a dor o corta. / Não importa, lentamente, seguro, fecha a porta.»

 

«Penso, logo existo?» - interroga-se o homem nobremente triste. E sobre ele chama a porta, algo que não pensa mas que existe. Última alteridade que, final lhe assiste...?

 

Pedro Alvim,  in Ler/Escrever

Diário de Lisboa de 24 de Março de 1987.

 

 

 

 


 

 

Silva Carvalho

Ao Acaso,

Porto, Brasília Editora

 

Elucidação procurada e perdida

 

AO ACASO

SILVA CARVALHO

BRASÍLIA EDITORA-PORTO

 

 

I. A POESIA DO MOMENTO

 

Não é fácil catalogar a poesia portuguesa do momento. Algumas tendências no sentido da contenção formal que subordina conteúdos a configurações não verosímeis; outras, polarizam o discursivo filosófico (metatexto), na referência, sem equívocos, a uma subjectividade no quotidiano. Algum discurso artificioso deu lugar a discursivo conceptual, e vice-versa. Contraste não definitivo.

 

Uma recente recolha efectuada pela revista Poesia (nº 26) ilustra para a poesia espanhola o que deveria ser demonstrado para a poesia portuguesa: nenhuma «nova sentimentalidade».

 

 

II. AO ACASO

 

Ao Acaso, de Silva Carvalho, exemplo individualizado de uma tipificação da vida através de um romancear da poesia em enredos de conceitos que sustentam o texto.

 

Se me é permitido retirar frases do contexto e reorganizá-las na sua revelação mais secreta, reescreveria: «Tudo por dizer» (pág. 11), mas «A gramática enlouquece-o na filigrana boçal» (pág. 18), daí uma «irrupção/de falas onde o discurso jaz quase adstrito/à materialidade tosca e crua da execração», onde «ficar, permanecer na loucura como teorema/de uma linguagem capaz de elucidar o poema.» (pág. 18).

 

Elucidação procurada e perdida. Incapacidade da poesia dar a resposta: «A poe­sia selvagem» (pág. 77) testemunha o abismo da demência («Literatura/e a outra face, porque aqui age só a loucura» (pág. 103); «gramática endoidecida» (pág. 93); etc., quer dizer, uma sobredeterminação de questionar a razão do texto, a relação (e afinidade) entre a pulsão textual e outras (p. ex. a erótica), em passagens que caracterizam o discurso no âmago da intencionalidade da problematização, numa irracionalidade.

 

Em certo sentido, é o conflito da «consciência» determinada pelo «ser social» (Raymond Williams) que impõe a truculência do seu texto. Uma retórica febril recor­rendo à banalidade e à ornamentação mais inesperada («Essências e ipseidades e solipsismos são/esplêndidos esgares para a vacuidade imoral.» pág. 44), insistindo numa de­sobediência (irónica) a esvaecidas preferências que tantas vezes a rima impõe.

 

Abstracto, descritivo, influenciado pelo detalhe do seu próprio comportamento, abordando as contingências sem disciplina, com exasperação, particularidades de exal­tação de júbilos ínfimos de insatisfação, do caos, ao acaso da vida.

 

José Emílio-Nelson in finalmente domingo!

Comércio do Porto em  15. Fevereiro.1987

 

 

 


 

 

Ao Acaso

Silva Carvalho

Brasília Editora – Porto

 

 

Oitavas que sem serem à maneira de Camões nos parecem estar entre a poesia e a vida numa rítmica repercussão das palpitações cardíacas.

 

Uma exposição quase espontânea e natural do quotidiano, do indivíduo na realidade de essenciais vivências ou, pelo menos, do seu eco:

 

«Ao acaso do coração, um homem distraído entre o quotidiano pífio e a viagem, ei-lo, sem enredo nem paradeiro, saído da matéria dos dias como uma passagem pelo sonho, simulacro e sibilo, nascido quando a hora se assemelha à clivagem. Nenhum sentido, mas a grave necessidade em permanecer, para sempre, sem idade.»

 

O Diário em 25. Abril.1987

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Setembro

Solcris

 

Ocasionalidades

 

SETEMBRO

SILVA CARVALHO

EDIÇÕES DE AUTOR

 

Os textos datados (de 26/8/83 a 25/9/83) de SETEMBRO, Silva Carvalho, não cessam de diagnosticarem (no mesmo sentido em que Deleuze diz: «Espinosa diagnostica no mundo...») as causalidades de uma biografia. Pensamentos fortuitos, equívocos comuns, temperamentos, procedimentos da vontade, vivência privada.

A descrição descentra a insuficiência do texto e anuncia o modo de acesso (mediação), harmonização esclarecedora e coincidente entre leitores:

 

Tanto desejo de escrever que não pode ser
literatura! A vida exige-me estar aqui.

(…)

fazendo da palavra o quê? Não só poesia.
Até talvez nem. Mas isto, estar dividido

(...)

Escrever, escrever! Mania, é o que é. Dizer

(...)

(p. É o que é)

 

Reproduzi algumas linhas somente para melhor salientar o valor do procedimento adoptado: utiliza argumentos (i.e., máximas) de antecipação pertinente e percebe-se que prosseguem essa ficção dominante. Ficção de associações encorajadas por uma euforia confessional que desvenda, ao acaso, as arbitrariedades, que recorre a uma memória das circunstâncias, uma privaticidade.

 

SENTIDO DISSIMULADO

Apego à alocução que assimila uma experiência («a merecer. O pensamento sempre me atraiu./ Não pela verdade. Mas pela possibilidade»., pág.14) como ponto de partida para «possibilidades» textuais. Expediente ou simulação, o texto é uma construção excessiva («O texto não fica concluído, mesmo depois de acabado./ Nada lhe falta, pelo contrário, tem a mais. É esse a mais/ que me perturba profundamente. Porque deveria haver/ um lugar para tudo./ À poesia o que é da poesia.», pág 63).

 

Colocação da «vida» através de implicações de inexistência estética que falham os poemas (p. Presságios), e que dão o sentido dissimulado (cf.p. Sem resposta) e reencontrado: «Setembro mergulha-me na luz da nostalgia». pág. 37; «Hoje, nem sequer o desejo, a atracção da poesia»., pág. 51. Significará que o texto elaborou (na sua incapacidade) um dizer de intersecções? Alternância que subentende Pessoa noutros argumentativos trechos, mas que assume com outra precisão especulativa um plano de significação coerente.

E ainda elucidação (enquanto biografia) que confere um particular significado à referência Holderlin/interpretação de Heidegger (no p. Que chato!), ou seja, poesia é pensamento fiel (Heidegger), e em Silva Carvalho, texto de ocasionalidades.

 

José Emílio-Nelson in finalmente domingo!

 Comércio do Porto em  6. Setembro.1987

 

 



 

 

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Da Estupidez

Silva Carvalho

Brasília Editora - Porto

 

IMPOSIÇÃO DE UMA AUTOBIOGRAFIA

Sobre «Da Estupidez» de Silva Carvalho

 

Há no livro DA ESTUPIDEZ (de Silva Carvalho, Brasília Editora - Porto) uma legendação ao texto poético, a negação de um espaço da impessoalidade, e a imposição de uma autobiografia.

 

Silva Carvalho ambiciona esbater «A perplexidade comovida de quem se sente ávido» pela anulação contida noutro verso do mesmo poema da pág. 25: «Mas o que acontece nega a Iíngua do possível» Por isso esse sentido do inacabado justifica que o A. se sobreponha ao texto e o alinhave (pág. 68), o anote do infatigável, de resíduos diarísticos. O A. fala ao leitor como se o tivesse à mesa do café, com comovedora confissão (p. ex., pág. 102 : «Gosto muito do poema A FALTA, já do outro não poderei dizer o mesmo.», ou anteriormente : «Acabo de reler todos os poemas deste livro e não sei o que dizer. Gostei de alguns deles, nem me parece que o livro seja mau, mas estou incapaz de lhe encontrar uma linha de força, uma directriz conceitual, o que quer que seja.» pág. 84 ou isto : «Apetece-me, estupidamente, agora, escrever uma linguagem quase inteiramente denotativa (...) » pág. 44.)

 

O A. e o seu duplo jogam dentro dessa «euforia tresloucada» (pág. 102), o que torna a leitura possível numa distanciação, estranhamente, relativamente ao texto poético. Porque o tom da confidencialidade das notas tenta interrogar o empastado de muitos trechos. Torna-os domésticos, coisas da profissão (p. ex: Hoje, 17 de Dezembro, cá me disponho a escrever este texto. depois de passada a tempestade familiar, que me arrasou, e depois de ter feito algumas leituras mais ou menos teóricas sobre o processo poético ... (pág. 34). Mas o contraste entre esses universos (da literatura, da vivência) a que o leitor assiste é mais um conceito perspicaz da banalização, pastiche. de um A. que recorre a formalizações complexas, esforçado júbilo lexical, e depois, em rodapé, colectiviza a leitura, contribuindo com empenhamento para a consciencialização do processo.

 

Neste contexto surpreendemos poemas (p. ex., INACABADO) que constituem excepção a toda a minha anterior tentativa de explicação do presente livro: o poema termina sem essa anotação circunstancial que o enquadra no quotidiano do A.

 

Em DA ESTUPIDEZ (p. ex., Finalmente, pág. 23) : «A poesia é agora um grande enigma sem fundo», o poema sem construtivismos desmistificadores ou outros.

 

José Emílio-Nelson in Jornal de Notícias

 de 28. Fevereiro. 1989

 

 

 

 


 

 

«Da Estupidez», de

Silva Carvalho

OS RATOS ROERAM A LUA

Luar de Janeiro não tem parceiro. E como durante o mês que ora finda, frio até mais não, o céu se mostrou quase sem nuvens, aquele astro deslumbrou loucamente os nossos olhos. Então, para quem se levanta cedo, longe da cidade, e tem de apanhar o comboio num cais distante (em Sintra, por exemplo), a minutos do sol aparecer, ó maravilha das maravilhas! nunca a Lua foi uma circunferência tão perfeita! Não sei, amigos meus, se estão a vê-Ia: em palavras comum, comuns até mais não, a tipa era mesmo um disco de prata, fixo num escuro não escuro, a fitar quem a fitava sem uma única pestana a tremelicar... Enfim: só visto! Depois, com o correr dos dias, começou a ser ratada pelos dentes do tempo, isto é, a circunferência foi perdendo a sua perfeição. Já não era um disco - era um pedaço de matéria branca com mordeduras à volta. Tal sucedia por razões muito concretas das leis astronómicas que regem o Universo. Mas quem erguia os olhos para o firmamento, e contemplava o astro assim lentamente comido, tinha, ó se tinha!, outro pensamento: escondidos ratos é que estavam a desfazer, a dentadas miudinhas, o desenho do que fora uma tão nítida circunferência. Uma outra lógica, pois, se distendia pelo cérebro de quem assistia a tão tremendo desastre - e a pergunta, íntima, era só esta: “Onde os malditos ratos destas noites de Janeiro...?”

 

Sem dúvida que uma pergunta estúpida. Sucede, no entanto, que semelhante pergunta se filia no conceito de estupidez proposto pelo poeta Silva Carvalho, "desterrado" lá para as Américas na função de professor de Letras, como muito bem se depreende do seu último livro, intitulado Da Estupidez, numa edição portuense da Brasília Editora.

 

Insere o livro, na parte final, uma meditação designada por "Para uma Estética da Estupidez", na qual se lê, preto no branco, logo no começo: «Há anos a esta parte ando a matutar num livro mais ou menos teórico sobre a estupidez, não a tão famigerada e essencial, por produtiva, estupidez humana, mas aquela que estaria na base da minha aventura poética.» Justificando essa sua intenção, Silva Carvalho acentua: «Elaborei na cabeça algumas dezenas de teorias, vivi-as como um danado, entre o terror da congestão e o sacrilégio da excitação intelectual, perdi-as na utopia da memória, a que a civilização chama comummente de esquecimento. Numa época em que o biografismo inexiste porque há muito deu o pio, atacado pelas cabeças mais pensantes do século, tenho que confessar que não vejo outra maneira de chegar aos fundamentos, porventura precários ou aparentes, da minha poesia, e do que subjaz nela de estupidez, se não enveredar pela minha pessoa.»

 

Para o leitor que ignore a aventura poética de Silva Carvalho (o que, sem ofensa, vulgarmente acontece), damos aqui os títulos da sua autoria: Suor do Tédio, 1968; Les Trois Âges (La Pensée Universelle, Paris, 1973);  Memória do Presente (Brasília Editora, 1977); Canções, 1978; Assim (Brasília Editora, 1979); Essas Vozes (Quatro Elementos Editores, 1983); Antes o Paraíso (Black Sun Editores, 1985);  75 Sonetos (Solcris, 1985);  Ao Acaso (Brasília Editora, 1986) ; Setembro (Solcris, 1987); e Da Estupidez, a que nos estamos a referir. Uma obra poética, por consequência, que já se estende (é fazer as contas) por onze livros, e que (assim são as coisas) poucas referências tem suscitado. Tudo branco como o disco da Lua. Daí a seguinte confissão de Silva Carvalho, inserta na meditação "Para uma Estética da Estupidez": «Aos quase 40 anos, não me conheço. Não sei quem sou. Sei que sou, que existo, que vivo. Mas se me perguntarem certos traços da minha pessoa, acerca do que se costuma dominar de personalidade, fico perplexo, sentindo um espanto inaudito paralelo ao branco que se abre em minha  frente.»

 

E um tanto dolorosamente: «Não é por acaso, nem por ironia, nem por bovina aceitação ou impura bonomia que, quando minha mulher me diz que sou um chato, ou um amigo, que fui cruel, em tal situação mais ou menos histórica, não me defendo. Pelo contrário, é com uma redobrada satisfação que ouço esses testemunhos da minha maneira de ser, como se, no fundo, eu sentisse ou suspeitasse que, não tendo nenhuma maneira de ser, qualquer uma me seria boa e desejável para cumprir devidamente meu papel de homem. Se me perguntarem, por exemplo, qual dos traços, como a inteligência ou a sensibilidade, prevalece mais na minha actividade escritural, seria incapaz de responder. Nunca me senti sensível. Se inteligência tenho ou penso ter, é porque o mundo, ou os homens e suas instituições, me atestam afirmativamente em diplomas disto ou daquilo. Se sou sensível, é porque minha mulher receia muitas vezes certas situações que eu possa viver. Tudo isso me vem do exterior, não aparece em mim como evidência ou íntima comprovação. A única ilusão que tenho a meu respeito, em relação a esta matéria, é desconfiar que devo ser um intuitivo, pois vários acontecimentos e experiências várias confirmam mais ou menos que por vezes sinto, ou pressinto, certas coisas que a realidade depois vai caucionar.»

 

Mas o que é a intuição ...? Silva Carvalho: «É um indivíduo dizer coisas sem saber muito bem o que está a dizer, ao acaso, falando e sentindo gratuitamente, sem que a consciência esteja presente. Não nos traz nenhum conhecimento. Pelo contrário, incomóda, porque, finalmente, não nos oferece o conforto de qualquer sentimento contemporâneo de qualquer realidade que se viva ou contemple. É o estar a sentir coisas estupidamente, sem nenhuma razão visível que o justifique. É o que me acontece quando escrevo.» (...) «Daí o eu dizer muitas vezes, aos amigos simpáticos, que não sou um poeta. Muito menos um criador. Poeta porque não tenho a ilusão de estar a fazer o que quer que seja, criador porque não tenho a pretensão nem a necessidade de imitar essa tradicional ideia de um Criador (...) no vértice da nossa humana mediocridade.»

 

Qual o sentido, então, de uma “Estética da Estupidez” ...? Que se ouça mais uma vez Silva Carvalho: «”Estética da Estupidez”, não no sentido de se escrever coisas estúpidas (já há muitos que o fazem como se fossem dotados de inteligência ou sensibilidade), mas no sentido de se ir buscar a inspiração ao DISPARATE, na sua ressonância etimológica de soltar ou libertar ou mesmo arrojar, esse extraordinário espaço da clivagem e da separação.»

 

O leitor, não convencido, perguntará ainda: mas porquê Estupidez ...? E Silva Carvalho: «Simplesmente porque me parece essencial tomar o ainda pejorativo na nossa civilização e fazer dele um momento ou motivo de criativadade. Não há nesta atitude nada contra a inteligência, a sensibilidade, todas as faculdades humanas que têm sido objecto de carinho e de apreciação ao longo dos séculos. É mais uma tentativa (...) de alargar as possibilidades (...) do discurso humano, enriquecendo-o com pequenas achegas ainda não detectadas ou pouco detectadas ao longo dos séculos da tradição ocidental.»

 

Assim sendo, e erguendo a mão ao poeta, bem poderemos dizer que foram os ratos que roeram a circunferência da Lua de Sintra ao longo deste longo mês de Janeiro ...

 

Pedro Alvim in Cultura e Espectáculos

Diário de Lisboa de 28 de Janeiro de 1989

 

 


 

 

DA ESTUPIDEZ

Silva Carvalho

Porto, Brasília Editora, 1988

 

NOVOS LIVROS

 

Silva Carvalho é natural de Vila do Conde, tem 11 livros publicados, é leitor de Português na Universidade de Santa Barbara, na Califórnia.

 

Quem tiver a sensibilidade sentada numa poltrona ou o intelecto repousado numa cátedra, não deve ler os poemas Da Estupidez, de Silva Carvalho.

 

De uma forma truculenta, mais virada para si do que para os outros, em que parece querer castigar-se, não direi por masoquismo mas por catarse, ou por simples confessionismo de intenção criativa, Silva Carvalho abre aos seus leitores a alma e o pensamento, nada lhes escondendo, com uma preocupação, claramente não redentora mas artística, de mostrar a utensilagem e as matérias-primas, e ainda toda a desordem de um atelier, que estão por detrás de um quadro cuidadosamente exposto num salão. Isto verifica-se, especialmente, mas não só, nos comentários que tão originalmente acompanham os poemas. Poderíamos escolher entre os chavões alguns que nos parecessem mais adequados ao seu discursivismo, como impressionismo, concretismo e outros mais, com toda a imprecisão que uma leitura atenta nos denunciaria, mas parece-nos, mais próximo da verdade, dizer que a sua poesia procura surpreender, nem sempre o conseguindo, o devir da sensibilidade e do pensamento, onde assomam livros e experiências flutuando na placenta existencial, onde se interroga, se critica, se sofre. Entre a gnose e o ontos, o autor não receia diversificar o seu empreendimento pelo que é tocável pelos sentidos. É um homem que percorre do culto ao primitivo.

 

Gostei. Razão para deixar este bocadinho:

 

«No começar de qualquer coisa há sempre/uma cegueira, um ponto em branco onde a só/intuição pensa o acto ou a sua loucura.»

 

E, já agora, um excerto do comentário a este poema:

 

«Claro que não sei muito bem o que está dito nesse texto,  mas gostei sobretudo do tom quase displicente que adoptei. Fui mais pelo ritmo do que pelo pensamento, embora suspeite que de toda aquela incongruência poderá, se se quiser, fazer ressaltar um periclitante sentido, mesmo do insentido.»

 

J.M.(Joaquim Matos)

  in Letras e Letras n.º 16 - 5 de Abril 1989.

 

 

 

 


 

 

Da Estupidez

Silva Carvalho

Brasília Editora

 

 

Silva Carvalho explica-nos determinados poemas, aquilo que o levou a escrevê-los, a corrigi-los, a suprimir ou a acrescentar esta ou aquela palavra, o que levou a alterar-lhes o ritmo, o sentimento do momento que os gerou, etc. É evidente que com isto em nada enriquece o que lá deixou escrito. Explicar um poema é sempre tão difícil? Como se explica o canto de um pássaro? Ou os milhentos acasos que produzem a palavra poética em determinado momento e em certo espaço?

 

Como se explicam os

 

«Momentos matinais de queda na fantasia
solar, os cânticos que nos despertam asas
soltas subindo pela memória de histórias
lidas quando o medo da morte inexistia».

 

É verdade que Silva Carvalho escreve num desses p/s: «E não largo a folha de papel, aqui estou, desenvolvendo razoados mais ou menos enfadonhos e que não interessam a ninguém, muito menos ao leitor hipotético. Uma chatice!»

 

O poeta confessa-se: Ele o diz, meIhor, ele o escreve. Respeitemo-lo.

 

M. S. (Miguel Serrano)

  in O Diário em 11 . Fevereiro 1989.

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Nem Prosa nem Poesia Outra Coisa

Brasília Editora 110 páginas

 

 

Escrita pessoal esta de Silva Carvalho, que acrescenta mais uma colectânea poética à sua já relativamente extensa bibliografia. Do ponto de vista formal, trata-se de um livro dificilmente catalogável. O autor vive actualmente em Goa, Índia, encontrando-se ligado à Universidade de Goa.

 

 

in Jornal de Letras  em 27  Novembro 1990.

 

 

 

 


 

 

 

Silva Carvalho

Nem Prosa nem Poesia Outra Coisa

Brasília Editora 110 páginas

 

NARRAÇÃO IMPULSIVA

 

Parecendo querer traduzir (glosar?) a frase de Kristeva (Ni poema ni roman, mais polylogue), Silva Carvalho questiona-se mais uma vez neste recente livro (NEM PROSA NEM POESIA OUTRA COISA; Ed. Brasília) sobre a escrita (pág. 99):

 

A vida deixa-me assim em plena confusão de linguagens que se anulam ou confrontam, ou mais explicitamente noutro fragmento (pág. 49):

 

Escrever, escrever sempre, é a canção, não importa o quê, é a tradição risível, mas escrever a incapacidade do ser como a incompetência do homem, escrever

 

E é nesse constante conflito abstraccionista de «escrita do acaso» (pág. 88), de referências a práticas quotidianas, de autocompreensão íntima, que Silva Carvalho apresenta a consciência radical do anticonformismo. Encontramos uma narração impulsiva, com intensidades diversas na focagem e defesa de pontos de vista estéticos: discurso que verbaliza a poesia na recusa de si mesma, na experimentação de uma dimensão didáctica (pág.33):

 

Por isso se escreve. Não para transmitir
a ilusão de um poder, o da arte, ou da língua,

nem a do domínio sobre as coisas, que é
o mesmo; escreve-se para se sentir possível

a vida que arfa e nos quer enterrar vivos
na mediocridade dos sentidos como no auge

do logro social, escreve-se para se saber
de onde a onde há um ser capaz de intuir

uma pausa, uma passagem, um degelo. Por isso
escrevo, caninamente preso ao sortilégio

da ignorância com esplendor da estupidez,
cada vez uma contradição, cada vez a vez.

Planos, tive-os, mas do ser, nunca da técnica ...

 

Excluindo trechos de monotonia, justaposições repetitivas, a poesia de Silva Carvalho é outra coisa: «Uma linguagem límpida. nada de figuras» (pág. 41), «à procura de um verso que me transporte, / da ponte onde o ser poderá sobreviver /» (pág. 23).

 

Não é somente a recusa da estética, mas inquietante ironia de recensão, uma recolocação interessante da finalidade última da escrita.

 

José Emílio-Nelson in Pontos de Vista – Leituras

Jornal de Notícias  de 3  Março de 1991

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Mais ou Menos

Black Sun Editores

 

O DESEJO MAIS ÍNTIMO É DE ESCREVER

 

Poesia  «Escrever, sem porquê nem previsível finalidade./ De estar aqui, assim aceitando quantas palavras / surdem na escrita da consciência, na leitura / do tempo ontológico. Sim, há um mundo aqui / que procura mais do que a palavra, entendê-lo / deixou de ser uma tarefa porque é um prazer./ E depois o impulso petrifica-se, um silência / perante o que não advém verbalmente, perante / o que não advindo ainda é mais tempo do tempo / humano. Mas a escrita continua, continuou.»

 

in Revista LER N.º 45, Primavera de 1999.

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

A Experiência Americana ao Vivo

Edições Aquário

 

 

Ponto prévio: não confundir com Armando Silva Carvalho. Os dois são poetas, mas tudo os distingue: geração e espectro da obra. Silva Carvalho é mais novo (n. 1948) e começou a publicar mais tarde. Embora haja um primeiro livro de 1969, a publicação regular ocorre a partir de 1977 (o exílio em França explicará o hiato), com Memória do Presente, seguindo-se-Ihe duas dezenas de títulos, em grande parte poesia, livros que deixam no ar uma interrogação: porquê o silêncio? Talvez porque, como sublinha Luís Adriano Carlos em texto de contracapa, a sua obra "reacende um duplo horror que caracteriza o seu imaginário: o horror à metafísica platónica do belo e o horror à supremacia aristotélica ou barroca da metáfora artística". Sabemos bem como uma e outra têm vingado no derrame finissecular. Agora, com A Experiência Americana ao Vivo - experiência que nos dera New England em 2002 -, o autor empreende o seu back to the roots, isto é, revisita "os sítios profanos" daquela América que atravessou nos dois sentidos, o geográfico e o porético: "A experiência, seja ela/ qual for, e sobra apenas o silêncio [...] Nenhum mito./ Nenhum índio ou cowboy,/ apenas a terra, o continente,/ a paisagem, e dá para sonhar [...] e dá para pensar." (p. 11) Antigo leitor de português em Santa Barbara, no Sul da Califórnia, Silva Carvalho privilegia o diálogo com Olson e Creeley, mas também com Sena e os modernistas americanos

 

(Eliot, Williams e Stevens), para que "o pós-modernismo faça algum sentido" (p. VII). A obra divide-se em duas sequências, ou Livros, como lhes chama o autor. No Livro I, "A Experiência Americana", estão agrupados 59 poemas, enquanto o Livro II, "Ao Vivo", é composto por trezentos cantos de oito versos cada. Poesia da experiência, já se viu, mas sem ademane fashion ou truque metalinguístico: "Sem remorsos./ Homem, sou. E calo-me./ Quarenta anos de experiência,/ e nem toda foi terrestre ou americana,/ sorrio, e sorrindo ironizo./ / Estar aqui. Estar sempre aqui,/ onde quer que seja, enquanto durar [...] sinto o espírito do lugar, e sentir dá-me / pela imaginação o que a ciência descobre." (p. 63) Como lembra Luís Adriano Carlos, a "ruptura sistemática com a ideia de perfeição formal, e portanto do belo, exprime sobretudo uma experiência do fascínio, mesclada de medo e terribilità, perante a vastidão esmagadora do [...] sublime, no sentido postulado por Burke e Kant." Autor de uma poesia escorada no conceito de poreticismo, ou estética da imperfeição, Silva Carvalho não abdica de pensar a poesia. O texto que fecha o volume, "A posição de Jorge de Sena na poesia portuguesa do século XX", é um bom exemplo do carácter reflexivo da obra.

 

Eduardo Pitta -  "O Som & o Sentido" 

in Revista LER N.º 60, em Outubro 2003.

 

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Adivinha: Estilicídio e Encíclia

Brasília Editora

 

A escrita e os dias

 

Silva Carvalho apresenta em ADIVINHA: ESTILlCÍDIO E ENCÍCLlA (Brasília Editora), uma «arquitectura» confessional do «inexistente momento» (de uma vida afectiva insatisfatória). A preponderância da confissão, do registo das emoções, da  dimensão pessoal latente, o antagonismo persistente, caracterizam demasiado «prosaicamente» a escrita:

 

(pág. 7) «o atrevimento da escrita, antes da escrita»

(pág. 8) «perder na escrita a consciência aflita.»

(pág. 10) «Partindo do principio que nada disto / é poesia, o que é isto, assim, prosaicamente? Dezenas de livros paulatinamente sofridos ao longo da escrita e pensável vida,»

(pág. 14) «quantos poemas perdidos ao longo da vida, / assim, miseravelmente diluídos na escória dos dias, desinibidos espasmos da consciência quando a invenção não tinha o constrangimento da materialidade sempre embaraçante da escrita. Interessa-me agora possuir um ponto de partida, visionar já no caminho»

 

Num outro verso, S. C., sintetiza a aparência ocasional do seu discurso na fórmula «palavra já não poética!.., ou noutras abordagens em que se escreve, p. ex., «de não saber muitas vezes o que escrevo», - pág. 52.

 

O autor assinala frequentemente a limitação obcecante da escrita redentora da instabilidade da sua experiência: «Escrever no mais periférico de qualquer/ estética ou ideia de literatura, escrever/ este sortilégio de palavras insubmissas», (pág. 97). Não que se trate de uma escrita-terapêutica, mas numa ambição de afrontamento definitivo e incondicional de uma vivência no limite do bloqueamento. O excelente poema FARTO DE SER ACUSADO, FARTO DE ME VER ODIADO constitui um exemplo de (in)existência conflictual que sustenta toda a escrita de Silva Carvalho: «um insuportável sofrimento... As solicitações dessa «tristeza desmedida» com «desejo de outra coisa» instigam o leitor a uma cumplicidade.

Essas vozes, ou apelos de divagação, são um processo vicioso (pág. 54):

 

«Leio a realidade como se fosse filosofia, / leio a filosofia como ficção, leio a ficção/ como se estivesse diante da poesia, só não/ leio a poesia. Minha ou dos outros, a poesia / vivo-a, em situação de identidade ou alteridade,» e na pág. 60: «Este circulo vicioso, a realidade lida/ como filosofia, a poesia vivida/ como realidade. Levanto-me manhã cedo, essa luz,». Uma harmonia que acentua toda a problemática de Adivinha: Estilicídio e Encíclia.

 

A bem dizer o poeta é animado por um «princípio orientador» que compensa a sua individualidade perturbada e a sua escrita «como delírio existencial..: «passar pelo tempo como um sincero paradoxismo» (pág. 93). Na observação da «verdade do tempo» e do «círculo da sua queda». Estilicídio e Encíclia.

 

José Emílio-Nelson in  

Jornal de Notícias  de 20 Fevereiro  de 1990

 

 

 

 


 

 

 

Silva Carvalho

Adivinha: Estilicídio e Encíclia

Brasília Editora, 111 págs.

 

ADIVINHA:  ESTILICÍDIO E ENCÍCLIA

 

Exílio

 

Passante dos quarenta e com doze títulos publicados, Silva Carvalho não quer ser «um qualquer poeta de sempre fénil e mais ou menos medíocre tradição lírica ponuguesa», como disse em «Jorge de Sena, Poeta Postmodernista» (Nova Renascença, 32/33, 1989), mais chocante para o bom gosto em que assentámos é vê-lo responder a quem o boicota que um Eugénio de Andrade, um Ramos Rosa ou um Humberto Helder «não ultrapassam sequer a corrente do lirismo tradicional que vai mudando, e muito compreensivelmente, a reboque da história, mas não fazendo história». Habituado a países e líricas, tem procurado, em textos (inéditos) recentes, articular uma poética como sempre faz dentro ou nas adjacências do poema. Observe-se esta abertura: «No que me diz respeito e para efeitos de compreensão da minha própria obra, eu vejo o século vinte português dividido em três momentos muito precisos. O Modernismo, que corresponde à obra de Fernando Pessoa (1888), o Pós-Modernismo, que corresponde à do Jorge de Sena (1919), e a época que corresponde à minha obra (nascido em 1948), e que eu chamo, já que ainda não há um nome, o Poreticismo. Como facilmente se pode verificar, há uma distância de trinta anos a separar estes três nascimentos, e o começo destas três obras. Não quero dizer com isto que o século vinte português não tivesse ou não tenha outros movimentos ou outros destinos. Quero dizer que para mim só estes são relevantes.»

 

Fundamentado em Derrida e na desconstrução, no verbo grego porizein, «abrir uma passagem ou um caminho», conclui que «uma escrita porista  ou porética é aquela que abre passagem, que abre caminho na aporia, isto é, no lugar sem caminho, na fronteira», que «procura resolver problemas, achar soluções».

 

Caracteriza-se por ser tautológica - repete o mesmo mas, sobretudo, contém-se o definido na definição -, parentética (a abertura de um novo espaço dá conta da precariedade do pensamento humano), babélica, enquanto fundindo línguas e linguagens diversas, e, por fim, apodemiálgica, ou seja, «que não pode permanecer no mesmo sítio, que necessita de se deslocar».

 

Esta quarta característica - que recorda o prazer de Silva Carvalho em actualizar um léxico silenciado - lê-se às claras no título aqui apresentado, de escrita «desassossegada e inquietante», inscrevendo-se em todos os seus momentos e avançando, afinal, na aporia, sendo que «Uma coisa é certa, a aventura continua».

 

Um diário americano entre 15 de Maio e 13 de Julho de 1987, formado por cem poemas que são outras tantas adivinhações do já sabido, Estilicídio? «Queda de água, gota a gota», ou morte do estilo; encíclia? «Ondulação circular produzida na água pela queda de um corpo.» Deslocando a própria vida, regular e monótona, a poesia deste «homem / sem raízes» ameaça muitas fundações. Tenham cuidado.

 

Ernesto Rodrigues in Escolhas / LIVROS 

O Jornal,  Março  de 1990

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Assim

Col. Poesia de Autores Portugueses,

Brasília Editora, Porto, 1980, 108 p.

 

A TRANSFORMAÇÃO SUBTERRÂNEA

 

Silva Carvalho, «Assim» - Fomos nós, nestas mesmas páginas do «Tempo», que pela primeira vez falámos de Silva Carvalho a propósito de Canções (1979). Entrar na casa dos trinta anos – e o nosso autor-narrador di-lo expressamente, sem complexos, numa afirmação de individualidade a que a nossa poesia não está habituada -, publicar o seu quinto livro e não registar um eco sequer da crítica mais ou menos encartada, aí há que desconfiar. Et pour cause.

 

Além da afirmação do sujeito acima relevada, o que contraria um autodeterminado vanguardismo, o autor procura buscar nos seus livros experiências de escrita, sem deixar, e em simultâneo, de pensar o circundante e a vida em geral que a poesia veicula. O livro de hoje, nos pares de exemplos binários em que é fecundo, isso mesmo significa: em agrupamentos como salaz / jaz, hoje / age, ordem / ardem, fala / falaz, hábito / habito, fá-lo / falo, sussurro / cicio, ódio / ócio, etc., basta um simples desvio para instaurar a consequência incómoda ao leitor de conteúdos e, logo para reconhecer a dificuldade de relacionamento num mundo de contingências – onde à contingência de uma mudança de fonemas, por ex., já destrói o edifício de certezas e cristalizações de escrita.

 

A grande deslocação acontece, porém, no compromisso da materialidade da palavra, em Memória do Presente (que, escrito em 67/68, será publicado em 1977). A neologização por vezes forçada vem, com Assim, serenamente despontar aqui e ali; por outro lado, a discursividade da Memória retoma-se, mais feliz, em Canções, onde o ritmo é um pouco o ritmo de Bob Dylan, de cujos títulos e referências o livro se apropriou. De Suor do Tédio (1969) e Les trois Ages (1973) nada diremos por enquanto; do último, todavia, afirma o autor tratar-se de uma homenagem a Van Gogh, Nietzsche e Artaud ou o percurso que se divide em rage / solitude / folie.

 

Como homenagem é este Assim. De organização também triádica, as primeira e terceira partes dão-nos em quarenta oitavas cada (presença evidente de Camões), um eu protagonizando o salto do pessimismo (disforia) à felicidade (euforia); ou, pelo menos, à capacidade de interrogar formulários políticos e não só. O sujeito progride, vai do quarto fechado ao ascensor ainda fechado, para transvasar, sob os reflexos de um sol que só a ele espantam, perante os livros além-da-vitrina: a resposta sobre se há ou não comunhão com estes verificar-se-á somente na terceira parte, que decorre de trinta poemas intermédios, inscritos no (do) caótico da rua.

 

Ora, também esta transformação subterrânea - «não a nível da acção do indivíduo sobre o meio, mas antes uma certa negação de valores e uma transformação do sujeito em progresso», como nos dizia Silva Carvalho -, parece ser mal entendida por quem continua a preferir a revolta explícita e caricatural do poema metralhadora. A recusa do autor significa outra esperança: «Sonha com outra poética (...) / onde a palavra possa viver livre e independente / dos dicionários cosmopolitas.» Ou: «Mas prefiro ser eu a descobrir a transgressão.» Que passa pela visão da anarquia, «esse romântico lugar»; pela certeza do futuro: «alguém há-de ler-me»; pelo choque da sintaxe contra a semântica; pelas rimas internas ...

 

Como lemos, sobretudo, frases, aqui deixamos uma, impressionantemente única: «Olha, quero dizer-te / quanto aprecio o calor liso dos teus / olhos.»

 

Ernesto Rodrigues in Livros/crítica 

Tempo,  de 5  Junho  de 1980

 

 

 

 


 

 

 

Silva Carvalho

Assim

Brasília Editora,

Um livro de Silva Carvalho

 

ASSIM (se) reescreve a Poesia

 

«Por um lado, eu gostaria- de. escrever um livro com uma só palavra,» - diz-me Silva Carvalho, que assina um lançamento da Brasília Editora, Assim, quinto livro de urna produção ainda ignorada pelos críticos, embora, na colecção «Poesia de Autores Portugueses» daquela casa, emparceire com José Augusto Seabra, Pedro Homem de Mello, Saúl Dias, Mário Cláudio ou Fernando Echevarria.

 

Estamos, numa destas últimas segundas-feiras, ali nas bandas do Campo Grande, saídos da Faculdade de Letras que este livro - na- sua organização e reflexão textual - põe em causa: significado, significante, atingir-se-á o signo? Define-ma, obra triádica, como «um livro escolar», mas é evidente que a própria instituição não aceita os desvios sintácticos que o texto tecido deixa filtrar. Um apelo nasce («Peço-vos: leiam-me» ou «Lê-me, amigo»); - uma invocação (ou evocação?) outra, porém, quase se perde no emaranhado: «Mãe, vem, serena e terrestre, dar-me o beijo». Acontece, entretanto, a reflexão da vida através da poesia, «no que teimamos - acrescenta  - Antero, Pessoa, eu, Augustina, .embora Antero fosse um idealista».

 

Reivindica-se, neste quadro, a afirmação da individualidade contra a desumanização ou impessoalização de certas tendências artísticas da (dita) vanguarda.

 

«Tento - diz ainda Silva Carvalho - imitar os meus mestres numa perspectiva renascentista: sou contra a originalidade a todo o custo, não ignorando que essa imitação pode transmitir-se na autêntica originalidade».

 

 

As homenagens

Homenagem camoniana parecem ser as primeira e terceira partes da obra, quarenta mais quarenta oitavas, que o autor explica pela intenção inicial de arquitectar uma epopeia, sem povo, a nível de indivíduo dentro da cidade. A primeira série suspende-se em 1976 e dará sequência a um romance sobre a experiência do exílio em Paris que de romance só ainda tem o .titulo: Fogo.

 

Estas quarenta oitavas (1976) - o sujeito que passa de uma situação fechada (que o seu criador não receia qualificar de miserabilista) à luz da rua, onde acontece o espanto original (Alberto Caeiro) e a dúvida sobre a comunhão através do livro - retomam-se, pois, numa segunda série de quarenta oitavas (1978), ultrapassada agora a misantropia pela perseguição de um sentido (sempre em devir) acerca da escrita, do país, da relação de forças e conceitos à escala universal, etc.

 

Este “rasgo" contudo, foi precedido de 30 poemas (1977), onde a mudança processada a nível de linguagem instala um prazer raro que os cortes na cadeia sintagmática redistribuem.

Um livro de uma só palavra Assim constituía-se, de certo modo, numa dupla verificação: a frequência do advérbio e o desejo de visionar a poesia como uma iniciação.

«Um significado esotérico» sobe, através da explicação de Silva Carvalho, desde as tardes de Verão, em Vila do Conde, quando, nos seus sete/oito anos, um tio (tuberculoso) lia o Só do (tuberculoso) António Nobre.

 

Uma palavra só. Mas a homenagem não é devida a Nobre; é, antes, uma homenagem à iniciação - me confidencia que nunca leu «o livro mais triste que há em Portugal». A familiaridade só-so (advérbio inglês) deu, na tradução deste, assim.

 

A terminar (passando, entre o mais, o «anarquista religioso» que foi José Régio), o anúncio, para breve, de novos 50 poemas - Explosões - «em que tento fazer reviver, no aspecto gráfico, uma certa poesia, americana». Diremos, ainda, enquanto aguardamos as obras em gaveta, «com características demasiado intimistas e miserabilistas, chegando a pôr em causa a literariedade», que António Silva Carvalho afirmou, anteriormente, Suor do Tédio 1969), Les Trois Ages (1973), Memória do Presente (1977) e Canções (1978).

 

Ernesto Rodrigues in Cultura  

Portugal HOJE  de 12  Junho  de 1980

 

 

 

 



 

 

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SILVA CARVALHO

Canções

 

TEMPOÉTICO

Bob Dylan

 

No regresso de um novo ano (universitário, pois), encontro o amigo Silva Carvalho, um segredo qualquer pendente das mãos - pouco mais de cem páginas brancas de longos versos interiores, homenagem a Bob Dylan, aos blues, a Hendrix («Ouçam a versão de onze minutos deste Red House de Hendrix no disco In The West»).

 

Os títulos dos poemas - cinquenta novos belos títulos remetem para Dylan e, sacrificadamente, (como) de um exílio, a lava sobe, complexa às vezes, queimando a (nossa) indiferença de leitores consumistas. Da composição manual saltou já para as livrarias mais sofisticadas - enquanto, um dom quichote?, o autor se me depara, um segredo qualquer pendente das mãos...

 

Ernesto Rodrigues in Tempoético 

Tempo,  15 Fevereiro de 1979

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Em Questão

Brasília Editora, 106 págs.

 

 

Silva Carvalho: Uma teoria das impurezas cruéis

 

(onde se fala de um dos exemplos mais claros, segundo o crítico, do conflito a que, no final do século, se assiste entre a cultura da palavra e a consciência do seu esgotamento).

 

1.º O poeta Silva Carvalho não é o poeta Armando Silva Carvalho.

 

2.º Em 1992, Silva Carvalho tinha já uma razoavelmente vasta obra poética: 14 títulos ao longo de 22 anos de publicação. Até 1999, sete novos livros foram acrescentados ao currículo (poesia, narrativa e ensaio).

 

3.º O nome de Silva Carvalho tem desfalecido também por acção indirecta do nome do outro (Armando Silva Carvalho).

 

4.º Há alguns anos atrás, o outro já invectivou Silva Carvalho em polémicas jornalísticas.

 

5.º Silva Carvalho não tem culpa de se chamar Silva Carvalho.

 

6.º Silva Carvalho é poeta, e publicou Em Questão (*).

 

7.º O texto crítico que se segue ignora polémicas onomásticas.

 

Pode-se afirmar, sem receio de cair em generalizações apressadas, que o traço dominante da literatura do século XX, e do pensamento literário que a foi enquadrando, consistiu não só na construção de uma aguda consciência da linguagem, mas sobretudo no ataque à validade da própria linguagem como instrumento cultural de representação da experiência. A iconoclastia e a experimentação por que o Modernismo tentou, de Rimbaud aos surrealistas, explorar as possibilidades fónicas e semiológicas das palavras prolongaram-se no apuramento das várias atitudes experimentalistas dos anos Sessenta e Setenta. Por outro lado, ao cepticismo linguístico subjacente aos códigos de silêncio por que a literatura, e particularmente a poesia, foi sendo proposta, sobretudo partir da segunda metade do século, não é alheia a consciência de um abastardamento do mundo da linguagem, de um desgaste das formas verbais e sintácticas, de uma nulificação da palavra, levados a cabo pelos meios de comunicação de massa. Se a atitude de negação inspirada nos modernistas era (é) ainda estética nos seus intuitos transformadores, embora contra-cultural nos seus fundamentos epistemológicos, a atitude de cepticismo linguístico é marcadamente terminalista, suicidária, pós-cultural.

 

Vem tudo isto a propósito da poesia de Silva Carvalho que, em minha opinião, representa, no contexto da poesia portuguesa contemporânea, um dos exemplos mais claros (ou clarividentes) do conflito a que, neste final de século, se assiste entre a cultura da palavra e a consciência do seu esgotamento. Consideremos o seguinte excerto:

 

Um sentido traumático, assumidamente
abstracto, a tautológica tauxia, fazer
de nada a poesia, ou da impossibilidade 
da língua profunda uma ponte sensual.
Traduzo em linguagem de imanência
a imagem, uma luz translúcida, saber
ou não saber nunca corresponde, e bem, 
à ignorância do que profundamente
se sabe. Sabe-se que se vai morrer,
mas entretanto, que entre, que meio?
Escrevi no primeiro verso, um sentido
traumático, mas que feliz ferida fere
a modernidade da semântica? E que saber
seduz a vida quando não se traduz, nem
se ignora, a superfície feliz da alma? 
Certo, a tautologia arrasta-se e arranha,
cada palavra padece de empobrecimento, 
em cada sentido sente-se que sentir
está em questão, é a questão de hoje.
De agora.
(...).(p. 49)

 

 

(*) Silva Carvalho: Em Questão, Brasília Editora, Porto, 1992.

 

Este excerto revela, desde logo, uma prática poética que se afirma por uma legibilidade difícil - quer por acção dos filosofemas que a percorrem, quer em virtude da tutela que um vocábulo estranho (no caso, tauxia) pode exercer sobre o espaço ideativo do poema, quer ainda devido ao recurso a combinações semânticas opacas. Como é óbvio, esta dificuldade reduz o campo de leitores da poesia de Silva Carvalho. Mas será que se pode enfrentar o sentimento de um esgotamento da linguagem com outra atitude que não seja a de uma reinstrumentalização dessa mesma linguagem? Será que se pode reconhecer que se vive numa descaracterizada cultura da palavra, ou reconhecer que comunicamos por uma "estratégia da língua em estado pobre" (p. 39), sem, ao mesmo tempo, reavaliar o significado da própria poesia (a arte da palavra) no mundo contemporâneo? Não será que a nossa contemporânea perplexidade perante uma existência que só o é verdadeiramente quando se transforma em imagem ou em palavra nos meios de comunicação de massa deve ser acompanhada pela reverberação da consequente contingência da experiência poética? A resposta é dada pelo próprio poeta - mesmo quando ela surge sob a forma de interrogação:

 

Todo o problema do discurso poético vive
aqui a sua emancipação e o seu desgaste,
ir mais longe a palavra da desordem, vir
e ver quase um castigo na confusão verbal
(p. 39)
Como restituir existência ao que não aparece
na imagem televisiva, na letra disforme e suja
do jornal? Eu existo, mas como, em que homem?
(p. 87).

 

Voltemos um pouco atrás, e consideremos ainda o primeiro excerto que foi citado. Julgo que ele epitomiza bem o quadro etiológico por que Em Questão se sugere em poesia enquanto conjunto reflexivo das causas do próprio fazer poético. Este é um aspecto que pouco terá de original, na medida em que se inscreve na linha da metapoesia contemporânea que tem usado o auto-comentário até, por vezes, aos limites do insuportável. Contudo, também acredito que poucos são os poetas portugueses que arriscam a verosimilhança poética de um sentir intelectual pelas fissuras da língua, pela disposição de perseguir o conhecimento daquela "adurência mimética da predisposição à fala" (p. 71) que institui a escrita artística. Poucos são os poetas que perseveram no (re)conhecimento teórico da insolvência dos meios linguísticos, da sua "dissolução e queda" (p. 71) - recordo, no quadro de apropriação (problematização poética) do léxico das chamadas ciências exactas, os exemplos de Vitorino Nemésio em Limite de Idade e de Alexandre Vargas em Organum. Poucos são os teóricos que (se) jogam (n)um poema pelos lances discursivos desse (re)conhecimento. Silva Carvalho faz tudo isso com a convicção de quem pouco tem a perder; com a esperança de quem alguma coisa há-de ganhar; com a razão de quem algum dia será escutado:

 

Sem grandes sobressaltos, dizê-lo assim,
a poesia em questão, ou a questão da poesia
como poderá ser vivida neste fim de século.
É do que venho tratando poeticamente ou não
e paulatinamente, crescendo, crescendo,
em páginas de livros culturalmente ignorados. 
Não vou acusar ninguém, ninguém existe,
e é terrível dizê-lo assim, para ser acusado.
Esta é a solidão. Falar para não ser, agora,
compreendido, e logo, para não ser. Espero,
esperarei. Quantos anos ainda de mundo,
de civilização, para que possa ser actual,
isto é, e traduzindo, real, com existência
própria? Chegarei sempre atrasado. Haver
ou não haver leitores não é o problema,
o problema é a descoincidência, é ser lido
por quem, ao me compreender, não sabe realmente
o que é compreender.
(p. 17). 

 

Se posso compreender correctamente a poesia de Silva Carvalho - embora ignorando a certeza de que sei o que é compreender - , julgo que Em Questão resume os vários aspectos da produção deste autor num sentido dominante que aponta obsessivamente para a configuração de uma teoria possível do poema. Uma teoria proposta, não raras vezes, sob a forma de poemas possíveis de uma teoria. Designemo-Ia por a teoria das impurezas cruéis, inspirando-nos num verso contido neste volume, designadamente o que se refere a escritores que

 

(...) obedecem à ordem,
limpam e lavam a língua das impurezas cruéis
(p. 105).

 

Uma teoria das impurezas cruéis será uma teoria em que as palavras, todas as palavras, bem como os elos sintácticos que lhes organizam as virtudes comunicativas, são encarados fora de um sistema de convenções de escrita, de programações estéticas. Será uma teoria que sobrevaloriza, através da acentuação dos índices de dificuldade referencial das palavras, a opacidade epistemológica por que se descreve (ou se tenta reproduzir) a dificuldade de adequação da linguagem à experiência. Será uma teoria para a qual a língua não tem impurezas, ou palavras maculadas, ou cruéis excrescências que o poeta deva sabiamente evitar, fazer desaparecer, a fim de gerar uma poesia adocicada nos seus tons particulares, mas razoavelmente avinagrada na sua generalidade pela busca exclusiva do reconhecimento público:

 

fingem uma arte de escrever com que fundam 
e confundem uma arte de viver, nos incêndios 
dos escaparates
(p. 105).

 

Será uma teoria, enfim, que ao pugnar pela exigência de uma experiência de vida para a poesia, não pode senão libertar as palavras dos constrangimentos convencionais por que algumas podem ser consideradas menos poéticas do que outras. Por isso, a poesia (toda a poesia) de Silva Carvalho é um contínuo (quase obsessivo) desdobrar de palavras estranhas, inabituais, e de deliberados abusos catacréticos:

 

a luz que jaz endogâmica na consciência (p. 11)
um ctónico sussurro (p. 20)
Desci as escadas prolíficas do edifício (p.23)
a língua na sua vulgívaga vulgaridade (p. 23)
absurdidade inulta (p. 23)
instantâneo da adjectiva
consciência em estado de língua plausível
(p. 25)
buscar uma outra presença, a da pacacidade? (id.)
sim, milhares de formas, de vultos, de imos (id.)
dedáleo prazer, sair do labirinto um homem (p 26)
Ideias lapidescentes sulcam instantâneos
da realidade a língua consciência, passar,
a maravilha, e o espanto magnânimo, dizer
em voz baixa, como é possível?
(p. 29)
sibilando razões ou estesias (id.)
cada hora uma exulceração da consciência (p. 33).

 

Estes são alguns dos muitos exemplos que poderiam ser citados. É difícil a sua compreensão? Sem dúvida. Mas quais são as critérios da dificuldade? Dizem eles respeito à formação cultural do leitor ou à economia da escrita do texto? Têm a ver com a temática tratada ou com a própria natureza ontológica do discurso humano? Responder a estas perguntas equivale a reconhecer, desde logo, um dos mais importantes níveis de eficácia da poesia de Silva Carvalho, a fazer cumprir um dos seus impulsos mais profundos ou, conforme escreve este autor:

 

(...) Que amor
capaz de trazer à língua a incompreensão?

 

É pouco poética, a escrita de Silva Carvalho? Talvez. Mas quem poderá dizer o que é a poesia, a literatura, sem deixar de fora muito daquilo que também poesia e literatura pode ser? Responder a esta pergunta equivale a confrontarmo-nos com a contingência do dizer humano, do fazer linguístico e do construir artístico. É também isto que a poesia de Silva Carvalho quer desesperadamente sublinhar. É também isto que, talvez, tenha contribuído para a dolorosa amnésia em que o nome deste autor (não) tem existido.

 

 

Manuel Frias Martins in As Trevas Inocentes

Colecção Parque dos Poetas n.º 3 - Aríon Publicações

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

O Princípio do Eco

Brasília Editora,

 

 

POESIA ACTUAL

 

Primeiro volume da “Trilogia porética”, de Silva Carvalho, Brasília Editora, “O princípio do eco”, no fundamental, exemplifica o que o autor chama de “o poreticismo” (“uma escrita porista ou porética é aquela que abre passagem, que abre caminho na aporia, isto é, no lugar sem caminho, na fronteira”, S.C.).

 

 

O problema da autocriação assuma (embora nas constelações diarísticas a que recorre o poema) a posição de “arte poética” (veja-se a alternativa, por ex. de Nuno Júdice, no recente número da Hífen, de Inês Lourenço, sobre esse tema).

 

 

Arte poética da inadequação, da emergência de uma flexibilidade de pressuposições subjectivas, a poesia de Silva Carvalho “trata a problemática do “sentimento” ou do “sentir” ou mesmo da “sensibilidade” em finais do século” (S.C.) com as objecções várias de retórica moldadas na pluralidade da poesia finissecular, colocando-se, Silva Carvalho, na apoteosa da sua própria solução (“O poema quer viver da história pessoal”; pág. 37).

 

 

O “princípio” (“ (...) perfilo-me / eco a pensar (...), “umas vezes o poema, outras vezes a vida”; pág. 67; 33) desenvolve um texto do “acto poético” (pág. 113) que (como em Rui Cinatti, Raul de Carvalho) desdiviniza o poético (“não preciso do poema como monumento à humanidade”; pág. Cit.)com o alcance da referência à trivialidade, à ironia do sujeito do poema, à plausibilidade da indiferenciação da matéria poética (“A inspiração é cada vez mais, do furor poético / de vacilantes estéticas nascidas no começo”; pág. 101), simulação depreciativa de alguns padrões professados pela poesia actual.

 

 

José Emílio-Nelson in Leituras  

Jornal de Notícias  de 24  Maio  de 1994

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

O PRESENTE, A PRESENÇA

Brasília Editora,

 

UM EMPOBRECIMENTO POÉTICO

 

Constitui o último livro da Pentalogia Americana, o livro O PRESENTE A PRESENÇA, de Silva Carvalho. A opção de criatividade de Silva Carvalho não tem estimulado recensões de intenção, dada a sua exclusão radical das poéticas definidas (e definidoras) na época contemporânea; opção frontal que afastará a atenção dos que recepcionam esses nomes mais unanimemente consagrados ( de Eugénio de Andrade a António Ramos Rosa, a Herberto Hélder).

 

A leitura dos livros de Silva Carvalho não exclui a adesão à pluralidade das outras soluções. Entendo até que a proposta idealizada de Silva Carvalho é complementaridade: não na ruptura evidente afirmada pelo próprio poeta (em estudos e na entrevista de Outubro passado ao JL), mas no retomar de temáticas epigráficas (se se pode dizer assim, para significar o questionário da “insolvência dos meios linguísticos”, cf. Manuel Frias Martins, que nessa orientação acrescenta os nomes de Vitorino Nemésio e Alexandre Vargas).

 

A presença da poesia, em S.C., aparece pela negativa na afirmação de um empobrecimento poético, de “outra coisa” que “não se trata de arte” em que “o poema nunca é o poema”, para citar, O PRESENTE, A PRESENÇA.

 

Essa proclamação da imperfeição, insisto em dizer, do empobrecimento poético, é, afinal, contribuição poética de Silva Carvalho. Esse questionar da perfeição, com convicções de prioridade, obriga a uma repetição constante nos volumes sequenciais da Pentalogia Americana:

 

(DA ESTUPIDEZ;  ADIVINHA: ESTILICÍDIO E ENCÍCLICA;  NEM PROSA NEM POESIA OUTRA COISA;  EM QUESTÃO;  O PRESENTE, A PRESENÇA).

 

Repetição de perplexidades (S. C. refere a “perplexidade ontológica”, ou, como diria eu, perplexidade categorial); perplexidades que constituem o traço posicional do eu-poético como elemento fundador do texto.

 

Todavia, o que é mais incisivo e o que causará mais estranheza é a manifestação do primado do poético na aparência do teórico, inevitável em sequências insistentes da sua contestação.

 

Talvez seja polémico designar uma poesia “contra a presença da poesia” (S. C.) como poesia do sortilégio teórico que não legitima a contingência da perfeição, mas é, nesse sentido, incontestavelmente de reconhecer e divulgar.

 

(O PRESENTE, A PRESENÇA; autor: Silva Carvalho; editor: Brasília Editora, 70 págs.).

 

José Emílio-Nelson in Leituras  

Jornal de Notícias  de 9 Fevereiro  de 1993

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

As Estações (1996), 

Edições Aquário , Outubro 2004

 

O mínimo e o excesso

 

... Poderíamos também falar em excesso no caso de um livro de Silva Carvalho, As Estações. A sua leitura ocasiona uma certa perplexidade. Não raro, o desenvolvimento dos poemas aproxima-se do de um ensaio. Recorre-se a interrogações, a uma terminologia especializada, a noções abstractas que conduzem esta poesia para uma espécie de conceptualismo. Mas, de súbito, o tom pode ser outro:

 

Mas agora, depois das últimas descobertas, olhar
para as árvores que começam a despertar da letargia
do Inverno significa quase a leitura de estranhos livros.
Uma alegria elementar enche o corpo de suaves
desprendimentos, que natureza se revê na natureza?

 

Fernando Guimarães in Crónica de poesia

JL de 14 - 27 Setembro 2005

 

 

 

 



 

 

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Silva Carvalho

Que Estupidez!,

A Experiência Americana Ao Vivo

 

 

SILVA CARVALHO: VIVER E CONTAR A VIDA

 

 

A já longa obra de Silva Carvalho (o primeiro livro de poesia Suor do Tédio foi editado em 1969, aos 21 anos do autor) é bem um caso de errância geográfica e de escrita, dimensões dificilmente separáveis no percurso criativo e reflexivo deste autor.

 

A geometria variável desta obra percorre poesia, romance e ensaio literário, com edições e reedições espalhadas por uma mão cheia de casas editoras, avançando e regressando a temas e locais que preenchem recorrentemente uma vida literariamente contada. É precisamente essa assumida não separação entre dimensões vividas e literárias que cose e dá coerência a esta obra global, onde continuamente somos chamados a partilhar com Silva Carvalho pensamentos, acasos, quotidianos, lugares, não necessariamente apresentados como exemplares ou excepcionais, mas inscrevendo-se aos poucos, sem imposição, num jogo de espelhos, de reflexões mútuas, entre o acontecido e o modo de o pensar e de o dizer, acabando por envolver o leitor nesse processo, de lhe permitir situações de contacto e de contágio com o que lê, com os momentos vividos que são desfiados à sua frente.

 

Nas Edições Aquário saíram já este ano dois livros: o romance Que Estupidez! e a obra poética A Experiência Americana Ao Vivo, apresentado como a junção de dois livros distintos, a que se soma, ainda, um breve ensaio A Posição de Jorge de Sena na Poesia Portuguesa do Século XX.

 

Jorge de Sena é, precisamente, figura invocada, quase como mítico parceiro de reflexão, nesta experiência americana que constitui a matéria prima de ambas as obras, retratando o percurso e as reflexões de Silva Carvalho no Estados Unidos, onde foi leitor, primeiro na Universidade da California (Santa Barbara), na segunda metade da década de 80, depois na Universidade de Massachusetts, entre 97 e 2001 (e tudo isto depois da experiência francesa dos anos 60/70, e da Índia pelo meio, e de Portugal sempre e em todo o lado).

 

E o que nos é apresentado nestes livros, em que diferentes linguagens literárias são utilizadas para contar cada um destes períodos da vida do autor, é a partilha pública da interiorização de uma América simultaneamente vivida e imaginada, a deambulação pelos lugares míticos que constroem uma terra tão carregada de sentidos, tão presentes nos quotidianos ocidentais, que permitem que lá se viva sem nunca antes se ter lá estado.

Ao ponto de, quando para lá se viaja, se estar, paradoxalmente, a caminhar de volta às raízes, back to the roots, como diz o autor.

 

E a força dessa dessa experiência física e mental de habitar os lugares e a língua de uma matéria sonhada, de um tempo mítico onde convergem índios e cowboys, as estradas do deserto, Dylan e calças levy’s, as cidades imensas e o deserto sem fim, a força dessa experiência é tal que “era tempo de dar uma linguagem/ ao que ficou da experiência desta passagem/ por esta parte do continente.” (A Experiência Americana Ao Vivo).

 

É uma América terra sonhada e sonho habitado fisicamente que desfila nas páginas das duas obras publicadas, escritas em tempos separados dez anos, o tempo diferenciado de cada uma das estadias americanas.

 

No romance explicita-se aquilo que nos poemas já se deixava antever, que experimentar um lugar é, simultaneamente, experimentar a língua com que esse lugar é construído e pensado. Essa fisicalidade da língua é, aliás, um tema assumido por Silva Carvalho, fazendo parte da sua permanente reflexão sobre a vida vivida, o modo de reflectir sobre ela e o processo de contar, de exprimir a outros, a incorporação – logo, o tornar realidade sentida – de um mundo por onde se passa, sendo secundário o modo como esse mundo é, e o importante, aquilo que conta, é como esse mundo é sentido, nos transforma pela sua presença e o transformamos pela nossa passagem e pela nossa reflexão sobre ele. O que sentimos é que é, e o que sentimos é, simultaneamente, o que queremos sentir e o que nos é proporcionado sentir pelo imenso acaso da vida.

 

Construir o nosso mundo e habitá-lo de forma livre, pode bem ser uma das leituras de fundo desta obra em permanente (re)construção, e aí torna-se irrelevante a verdade positivista dos factos (“E se eu, que vivo actualmente nos Estados Unidos, sou apenas a expressão do desejo e da invenção de um gajo que reside em Portugal, por exemplo, em Sintra? Um gajo frustrado por viver num país frustrado e que fantasia uma história de alguém que vive em Massachusetts…?” Que Estupidez!)

 

Porque a verdadeira história será sempre a de quem vive nos estados unidos da imaginação, da memória construída, de um futuro projectado, de relações humanas fraternas e amorosas, do jogo (doloroso) de uma outra língua, da esperança de encontrar a humanidade naqueles que nos são próximos e que amamos, mas também em quem nos cruzamos por acaso e que refazem, em permanência, o retrato que queremos ter dessa mesma humanidade.

Duas últimas notas, para a intensidade lírica com que um quotidiano é descrito em Ao Vivo, e para a ironia subjacente resultante da justaposição dos títulos dos dois livros publicados.

 

Carvalho, Silva (2003), Que Estupidez!, Edições Aquário

 

Carvalho, Silva (2003), A Experiência Americana Ao Vivo, Edições Aquário

 

Carlos António

in Revista Utopia, 16 de 2003

 

 

 

 



 

 

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O RITO DIÁRIO de um HIPOCONDRÍACO

 

Obsessão. Escrever para não morrer. Quais são as razões que levam um indivíduo a escrever ano após ano sem que um eco se faça ouvir ao trabalho empreendido desde os fins dos anos sessenta? Abandonar, calar-se, deixar a escritura aos «especialistas devidamente credenciados», é coisa que, tudo faz pensar, está longe das intenções de Silva Carvalho.

 

         De passagem em França caiu-me nas mãos um livro quase oficial sobre a poesia portuguesa de 1935 a 2000, «Anthologie de la Poésie Portugaise Contemporaine», obra publicada com o apoio do Ministério Português da Cultura e também do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas: 34 poetas nela figuram, de Vitorino Nemésio a Nuno Júdice, e todos certamente duma importância fundamental, pois como devem supor, nem sombras do autor de A Linguagem Porética nela aparecem. Difícil não é chegar à conclusão que se o caixote do lixo contém personagens com o valor do Silva Carvalho, os outros, os elementos presentáveis e de ontologias, devem possuir qualidades realmente fora do comum.

 

         Algumas palavras sobre o livro que hoje nos ocupa, O Rito Diário de um Hipocondríaco, dois textos, duas escrituras muito diferentes, o mesmo autor a 33 anos de intervalo, 1968 o primeiro, 2001 o segundo. O Rito é uma ode triunfal ao sentimento de vazio e solidão, numa república de estudantes um personagem gordo e com tendências à calvície, o autor, faz vinte anos e não é feliz. Estudar medicina não parece trazer-lhe uma suficiente razão de viver e o mundo que o envolve é dum estrangulamento total. Nesse mesmo ano, aqui e ali, estalam revoltas que vão muito mais além duma reivindicação de pão para a boca ou da necessidade de se fazer comandar por um providencial grande timoneiro qualquer. Mas ali, em Coimbra, num Portugal prisioneiro dum sistema e de muita água benta, homens jovens e jovens mulheres vivem em compartimentos bem estanques, compartindo no entanto os valores que a ordem moral se esforça em perenizar. Mas o autor e os seus companheiros de hospedaria não se embaraçam com estudos sociológicos. Jovens, sentem como em outros sítios do planeta que a camisola é demasiado apertada, tudo parece inerte, e os ecos que chegam de longe não mais fazem que acentuar a sensação de desolação.

 

         A língua utilizada por Silva Carvalho nos seus monólogos de prisioneiro em busca de absoluto é a coisa mais cómica, trágica, musical e afastada já nessa época de tudo o que se fazia no país onde nascemos: «Dói o despertar para mais um dia. Num diuturno ápice remeloso a realidade imiscui-se sorrateira nos interstícios da consciência para a batalha das horas fugentes. Um clarão acidulado e baço absorve a primeva e dormente disposição para o catalogar inoportuno e doloroso dos objectos ubíquos. Intermitentes bandas sonoras inscrevem no meu corpo arabescos irritantes e dispersos, um cogumelo de vapor mascavado corrói a frouxa durindana do som», assim começam essas noventa páginas de um texto que só tem como defeito ser demasiado curto.

 

         O Diário de um Hipocondríaco tem início a 13 de Fevereiro de 2001 em New Bedford, estado do Massachusetts. Silva Carvalho é ali leitor de português numa universidade. O mundo não avançou muito numa direcção de emancipação e justiça social, mas os anos passaram, o corpo envelheceu, doenças verdadeiras e imaginadas nele se instalaram e servem de pano de fundo a uma conversa-reflexão com os eventuais leitores. A língua portuguesa utilizada é duma grande simplicidade e nada tem que ver com o espírito Joyciano do escrito de 68. Como diz o autor, o seu diário é desprovido de técnica e de um qualquer domínio sobre a língua ou sobre a linguagem, por isso denominá-lo de arte seria inexacto. Mesmo afastados os artifícios seria falso pensar que uma verdade pura, isenta de qualquer preconceito, pudesse ser transcrita no papel. A verdade pura não existe. A escrita em si é uma técnica e como tal faz também parte da imensa eclosão de objectos que afastaram o homem da natureza.

 

         Um humor impertinente, em várias passagens do diário, não contribui a que as nossas veneradas instituições possam ter pelo autor uma qualquer estima, isso na hipótese de que alguns dos seus membros se dignassem a perder o seu tempo com semelhantes leituras. Vejamos o que diz o autor a propósito da afirmação do Pessoa de que a sua pátria é a língua portuguesa: 14 de Fevereiro, página 101: (…) A língua portuguesa não é a minha pátria, oh não!, é somente a matéria de que me sirvo para ganhar a vida. Como, em Portugal, também acontece com o francês que ensino em Sintra, na escola secundária. (…) Como cidadão que paga os seus impostos, não concordo absolutamente nada que se gaste dinheiro como num Instituto Camões, acho que primeiro se deveria tentar resolver os problemas do país, isto é, dos seus habitantes, e só depois nos deveríamos entregar a veleidades linguísticas e identitárias…(…) as relações que mantenho com o IC são meramente capitalistas, não são patriotas. Eles precisam de mim, eu preciso do dinheiro com que me pagam os serviços prestados. Não há mais nada entre nós.

 

         Não se equivoquem, o diário não é um manifesto, não é só isso, é também um olhar sobre as pequenas coisas do quotidiano e também um questionamento sobre outras que podemos ousar nomear de essenciais, ou, pelo menos, tão essenciais como aquelas que esta revista pretende modestamente utilizar como contribuição à transformação do mundo; coisas mais próximas do íntimo, do ser, dos inumeráveis sentimentos ligados à existência: da alegria e da tristeza, da angústia e da loucura, da vontade de viver e da vontade de morrer.

 

 

         Carvalho, Silva (2004), O Rito Diário de um Hipocondríaco, Edições Aquário

 

Elisiário Lapa

in Revista Utopia, 20 de 2005

 

 

 

 



 

 

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DÍPTICO MUSICAL

 

Março 11, 2007

 

 

Se pensarmos em cinco poetas portugueses nascidos na segunda metade da década de 1940, talvez nos lembremos de nomes como os de Joaquim Manuel Magalhães (n. 1945), Al Berto (n. 1948), José Agostinho Baptista (n. 1948), Nuno Júdice (n. 1949) ou Hélder Moura Pereira (n. 1949). Porém, há um leque muito mais alargado de nomes dos quais dificilmente nos lembraríamos. Entre eles, o de Silva Carvalho (n. 1948) é talvez o menos conhecido de todos. Não sabemos as razões que explicam esse desconhecimento, mas ao entrar nesta obra que começou a desenhar-se em 1969, com um livro de nome Suor do Tédio, desconfiamos que tal se deva ao que menos agrada às cátedras e leitorados da literatura portuguesa: a ousadia. Neste caso específico, a ousadia começa logo na ruptura com os modelos poéticos ocidentais, na rejeição da versejadura nacional e dos preconceitos estéticos e estilísticos que, ora enformando, ora deformando, contaminam muita da poesia que por cá se vai produzindo. Díptico Musical, publicado em Novembro de 2005, foi-me oferecido por João Urbano, editor da revista Nada, a quem se devem as palavras inscritas na contracapa deste livro: «Em Silva Carvalho assistimos a uma deslocação, senão mesmo a uma inversão, de todos os valores poéticos, assistimos à rasura das poéticas neo-românticas e neo-simbolistas que dominam ainda a paisagem portuguesa, para que passe outra coisa muito mais exigente e arriscada, que não se contenta mais com o pequeno lume da poesia, seu lirismo complacente, essa destiladora de nostalgia, da pequena dor sacramental, e sem recair mais nas suas ilusões ou nos seus jogos de embriaguez redentora, alquímica, minimalista, perfeccionista e gnosiológica». São palavras que se ajustam na perfeição aos dois conjuntos que compõem Díptico Musical, assim intitulado por razões que o próprio autor explica num texto do segundo conjunto: «vou chamar aos dois últimos livros escritos, / esta Rede do Discurso e esse Quase, Díptico Musical, de tal maneira as canções que agora passam / pela rádio têm sido essenciais na feitura de mim / escrita de textos em livros personalizados» (p. 181). O musical do título é, deste modo, consequência mais de um acaso do que de um conceito a priori, ele resulta já de uma constatação a posteriori apenas possível devido ao constante diálogo que o “sujeito poético” mantém consigo próprio no espaço interior dos seus textos. Pela segunda vez lhes chamo textos e não poemas, pois assim parece ser, na medida em que se inscrevem no campo da poesia como uma interrogação constante das premissas poéticas, éticas e estéticas ocidentais. Ao poema prefere o autor o texto, ao verso prefere a linha ou qualquer coisa de indefinível que se inaugura entre os dois. A primeira impressão desta leitura é pois a de uma poesia que não é poética – no sentido que usualmente se dá ao conceito -, assemelhando-se mais ao ensaio ou a qualquer outra coisa que, em última instância, diríamos ser apenas literatura. Neste lugar da literatura encontramos proposta uma porética: «Porética é, senão a filosofia, a actividade, abrir / uma passagem todos os dias e a todas as horas, aqui / e ali, não só no linguajar (os heróis mortalmente / desaparecidos, cadáveres da ordem tumefacta), / mas na diversidade dos acontecimentos diários / onde se possa realmente sentir a realidade nova» (p. 124). A porética resulta numa musicalidade muito singular, também ela feita de metáforas, analogias, aliterações: «da voz que é foz faz a vez» (p. 34), «a vez voraz / do sem voz» (p. 83), «um nefasto fasto. Rasto de quê?» (p. 160). As palavras como que se puxam umas às outras, sugerem-se, uma palavra ecoa já uma outra que pede para ser evocada, para ser desenhada no corpo do texto, para ser parte integrante desse corpo. O ritmo de produção é impressionantemente quotidiano, quase sufocante, como se a escrita fosse um hábito no qual o homem se faz texto e o texto se erige como dilação natural do homem: «Estou a gostar deste texto. Estou, estupidamente, / a gostar de mim» (p. 137). Esta é uma escrita sem tempos mortos, feita a um ritmo alucinante (13 textos num só dia!) que pode oprimir a respiração da leitura, impondo-se ao leitor e exigindo-lhe uma predisposição que é um duelo permanente. É um ritmo que não se furta ao ruído, à intromissão de uma musicalidade vocabular muito pouco usual em livros de poesia: acmástica, aletologia, amíntica, borborigmos, catavético, ctónico, deiscência, epulótica, esplenética, intonativas, ortolexia, paratáctica, solecismo, tauxia, ustão, etc. Num mesmo poema podemos vislumbrar palavras como ingluviosa, inópia, insimulando, intermúndio, irrogar. A esta riqueza lexical corresponde aquilo a que o autor chama de catacrese (emprego de termos com significação diferente da usual, por falta de termos próprios na língua), uma espécie de metodologia da porética que reafirma os limites da linguagem. Isto justifica o tom de uma poesia sem soluções nem verdades, anticonvencional, onde, talvez por isso mesmo, encontramos recorrentemente o emprego da expressão «o que quer que seja». Em dois perigos incorre o leitor: julgar esta uma escrita ensimesmada e presunçosa. Há imensos ecos da vida quotidiana nestes textos de Silva Carvalho, referências a objectos, canais de televisão, canções, autores, ecos do mundo contemporâneo. Há um apego que é também, ao mesmo tempo, um desapego da realidade mas que não nega a experiência como alicerce da escrita. Aliás, a escrita é ela própria, neste contexto, uma experiência quotidiana. Nota-se, é verdade, uma má relação com o exterior, uma má relação que não resvala numa negação, antes pelo contrário, resulta numa exaltação da dor interna provocada pelo que provém de fora. O efeito é também aqui o de denúncia de um mal-estar e daquilo que o provoca. O leitor como que é levado a crer numa necessidade de distanciamento do mundo, numa espécie de taciturnidade, nunca concretizada. Daí, talvez, o desconforto. Mais que uma interacção com o mundo há uma reflexão crítica acerca dessa interacção, de como ela resulta no texto, há uma interrogação sobre a forma como a linguagem capta ou até onde logra captar essa mesma interacção. Pode parecer que Silva Carvalho se coloca na posição do sábio autoproclamado, o anacoreta que, em posse de herméticas verdades – mesmo que sejam elas a da ausência de verdade -, se arroga no direito e no dever de profetizar a estupidez do mundo, revelando o que os demais não vêem, e de censurar o mundo por este não ver nele esse tal profeta que só ele sabe que é. Mas essa atitude faz parte de um jogo que é, talvez, o que de mais poético tem esta porética.

 

Antologia do Esquecimento

 

 

 

 



 

 

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CYPRESS WALK

 

 

 

Em Cypress Walk ou No Fim o Começo o poeta Silva Carvalho (n. 1948) reúne mais três conjuntos de porismas da sua obra porética. Antes de mais, pensando no leitor desprevenido, esclareçamos estes conceitos de porisma e de porética.

 

No n.º9 da revista Nada, em ensaio intitulado O Livro Porético, Silva Carvalho diz ser o porisma uma substituição da palavra poema no contexto da linguagem porética. Esta linguagem materializa-se numa escrita contínua, independente do chamado “momento de inspiração”, espontânea, um «quase impulso», mas longe de se subsumir nos automatismos da escrita automática: «a Linguagem Porética sempre concedeu à linguagem a sua quota-parte de liberdade e o seu estatuto de revelação da inexistência através da irrupção do disparate ou do inarticulado (Estética da Estupidez)» (in Nada n.º 9, p. 55). No entanto, mais que uma entrega da escrita às forças irracionais do corpo, há na linguagem porética uma entrega do corpo às forças da escrita.

 

Resulta este processo numa espécie de escrita diarística, onde vimos confundirem-se vida e escrita, literatura e pensamento, corpo físico e corpo mental. O leitor é colocado na posição inconfortável de quem entra no corpo de um homem através das palavras que esse corpo debita (produz), porque aqui a confusão entre a palavra e quem a enuncia é de tal ordem que, quase sempre, somos levados a não estabelecer entre ambos qualquer tipo de fronteira. Podemos falar desse desconforto imaginando alguém que, pela leitura, é induzido a uma espécie de hipnose que consiste na assumpção de uma existência que, não sendo concreta porque é já palavra, também não se pode dizer que seja metafísica.

 

No fundo, coloca-se assim em questão a ideia de que «toda a linguagem é metafísica», provando que sendo-o, também é uma outra coisa, isto é, o despojamento da experiência física num relato, mais ou menos reflectido, da mesma. Nos três conjuntos de Cypress WalkChamas, Procuras, A Coragem (Como Pressuposto Poético) – somos enviados para o tempo em que o autor foi Leitor na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, E.U.A. (1985-89). São porismas escritos entre 19 de Maio de 1986 e 12 de Abril de 1988, marcados por sensações dolorosas, de sofrimento e de tristeza, que se resolvem em dois planos distintos: um esvaziamento obstinado e obsessivo das expectativas – «Tudo se escreve e inscreve na página branca / do livro que nos é: pena que ninguém saiba ler / o mistério que se esconde no nosso corpo!» (p.57); «E porque a experiência é minha e única, / compreendo muito bem que não tenha leitores.» (p. 153); «ler-me, / às vezes, é tão penoso que compreendo muito / bem por que não tenho leitores» (p. 220) –, a afirmação da coragem enquanto tábua de salvação de um homem cuja vida se confunde com ir «escrevivendo».

 

Esta coragem é pois tanto um pressuposto poético como um pressuposto para a vida: «Conheço na carne a ambiguidade, fi-la estética / como qualquer um outro, não é um estádio avançado / da consciência humana, é o preço que se paga, / que se tem que pagar, quando se ousa o desconhecido» (p. 189). Desengane-se, porém, o leitor que julgar esta porética sob o prisma dos julgamentos amiúde praticados sobre uma qualquer poética. Neste caso, a predisposição do leitor terá de ser outra. Ele encontrará olhares sobre o mundo de fora (televisão, consumo, carro, mulher, filha, referências a canções, escritores, situações de trabalho – «A pedido de sua viúva revejo provas / da Poesia I de Sena») servindo de pretexto para o porisma, monstruoso corpo, metade poema, outra metade sofisma, onde a rotina da vida adquire um reflexo, quase como se o porisma fosse um espelho de um momento, de um instante, que é aquele em que as palavras surdem desse lugar obscuro e desconhecido do corpo escrevente.

 

 No primeiro dos conjuntos há palavras grafadas em maiúscula, com destaque para a palavra Nada. A epígrafe de Robert Lowell – «Only a nihilist desires the world / to be as i tis, or much more passableapenas induz o que o autor confirma:

 

 

ESCATOLOGIA

 

Literatura, literatura, para quê tanta

lixeira, dizia Joyce. Sartre escreveu mesmo

uma defesa dos intelectuais, bem precisam

coitados. Um prémio de mil contos é dinheiro,

diz a senhora professora, e depois …

Sim, depois … (Lembro o Pessoa,

daquele poema tratando severamente

a metafísica!) Depois, tudo é literatura.

Quando se pensa pensa-se o que se pensa.

A ideologia por detrás de tudo isso.

(Mas porquê esse tudo a aparecer cada vez

mais nestes últimos textos? Pergunta

ao futuro estudioso disto.) E quando não é,

é ainda pior, é a estupidez, a sobrevivência,

dizia Marx, de velhas ideologias.

Mas porquê literatura? Dá gozo, replica alguém,

(e eu incapaz de enfiar algures um ninguém!),

prestígio, diz-me a vozinha do lado,

não, o poema de circunstância tem geralmente

outras características, outras aptidões,

trata-se simplesmente, dirá a professora

doutora, de um poema, digamos, mau.

A literatura, a boa, liberta, quero pensar.

A má, prende. Era isso mesmo que queria,

giro eu em volta da obsessão, vender livros,

ganhar algum dinheiro com um emprego do tempo

honesto. Mas para isso. Pois é. É preciso

ser-se medíocre, ou ser um poeta feliz.

Aquele que no seu tempo nada diz, ou diz

o que convém ao leitor sentir que está a ouvir.

Literatura, literatura. Atura, e aguenta!

 

 

Silva Carvalho, Cypress Walk ou No Fim O Começo,

Edições Aquário, Sintra, Março de 2007.

 

02-09-2007

Antologia do Esquecimento

 

 

 



 

 

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NEW ENGLAND

Silva Carvalho

Edições Aquário: Mem Martins, 2002

 

 

Não é problema nem do clima, nem de especial tendência para a simpatia: julgo que a promoção circular de alguns nomes da literatura portuguesa se justifica em parte pela rectangularidade do país, expressa geográfica e mentalmente. Teoricamente, um pequeno país terá uma pequena comunidade de consumo cultural; e deve-ria ter um panteão poético também diminuto (do grande número de poetas ou escritores só podem queixar-se os escritores sem génio, com medo que as migalhas de atenção dos leitores, editoras e com-padres críticos se desviem rapidamente de si); e se me respondem que a Holanda também é pequena (e ainda mais), o que é facto é que Portugal é e sempre foi (e vamos a ver se será) uma espécie de Anti-Holanda em tudo: trabalho vs. laxismo, responsabilidade vs. mínimos obrigatórios; consciência vs. culpa; grande mercado cultural vs. os 2000-3000 compradores conscientes e habituais de livros. Simultaneamente, aquilo que faz um grande país (integração da diferença e da opinião contrária, como há dias se podia ler numa crónica), Portugal têm-no ao contrário: persegue os seus génios e depois de mortos coloca-os no Olimpo. Há muita sexta-feira santa para um rectângulo tão pequeno.

Vem tudo isto a propósito de NEW ENGLAND, novo volume de poesia de Silva Carvalho. João Urbano alerta na contracapa que, justamente, não se deve confundi-lo com Armando Silva Carvalho (segue-se depois um jogo de oposições entre ambos, glosando endeusamento e excomunhão, com um implícito entre valor próprio rejeitado e ausência de valor, e que este vosso servo, como leitor de ambos, não subscreve). Vamos distingui-los apenas. Mas o alerta está dado porque já a obra anterior de Silva Carvalho era um alerta contra a manutenção do mesmo que Portugal gosta de fazer. E porque NEW ENGLAND é um título-arma que quer apontar a perda de identidade cultural, por um lado, e a criação de um universo pessoal regulado pelo valor intrínseco das coisas, regulado na utilidade até da sua beleza, que corresponde a um certo imaginário tido do que é inglês. Curiosamente, Madame de Staël afirmava-o, opondo ingleses a alemães: “Les Anglais veulent à tout des résultats immédiatement applicables, et de naissent leurs préventions contre une philosophie qui a pour objet le beau plutôt que l’utile” (os Ingleses desejam resultados imediatamente aplicáveis, donde nascem as suas prevenções contra uma filosofia que tenha por objecto mais o belo do que o útil – tradução nossa). E sem dúvida que contra o pior do funcionamento do país literário nacional, Silva Carvalho aponta-o com sorriso escarninho: “Eis a novidade do gesto, culturalmente/ falando, escrever-se sem que não haja/ nada para dizer. Nunca o ocidente viu tal coisa (…). Porque quem escreve/ ignora. Escrever desta maneira deixa/ de ser uma acção para se transformar num lugar. (…) / A estética vive ausente. A leitura jaz/ destruída como um acesso do excesso/ que se destitui no insignificante apelo/ de si mesmo. Que se está a dizer? Mas/ nada, ora essa! E no entanto, apesar/ de tudo, este nada nasce dizendo-se…” (pg. 46).

Ilha, separada de tudo, esta poesia que ironiza sobre a própria solidão em termos absolutos, quer ela signifique incompreensão, disfunção perante as regras deste mundo, sarcasmo sobre a sociedade, análise do quotidiano mínimo: “A conjuntura presente: dor em toda a parte,/ o corpo disfuncionado, a mente medindo/ meticulosos mecanismos do medo, mitri- / dática maneira de se sobreviver ao caos./ A tarde chuvosa e insignificante, o sentido/ destituído (…)/. O deserto possível/ da analogia indiferente à chuva que chove,/ que se procura provar? Que nada é ficção,/ que tudo é realidade, até a realidade viva/ do nada. Que é agora. Uma dor substancial/ colando-se à hora da escrita mitridática.” (pg. 71). Ou ainda: “Na história do homem, é claro. Homens/ e mulheres não são mais do que homens/ e mulheres, nada mais há antes ou depois,/ nada mais há aci-ma ou abaixo.” (pg. 192).

Quotidiano, ironia, teoria, ironia, meditação, auto-ironia, confessionalidade, inovação conceptual ou vocabular, quotidiano, confessionalidade, conclusão (em sarcasmo, glosa, intertexto ou apenas remate da ideia de poema): eis a estrutura (aliás, impecável) da maior parte destes poemas em jeito discursivo muito próximos de Jorge de Sena (como apontou João Urbano), mas, palidamente, ecoando também as construções perfeitas de desconstrução conceptual de Alberto Pimenta.

Arma de análise e purificação, é o real que visita o universo desta poesia, como “as temperaturas introduzindo/ em New England outras paragens/ do que é a terra” (pg. 193). No país quotidiano do poema, Silva Carvalho viaja.

 

Pedro Sena-Lino

 

 



 

 

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MEDIOCRIDADE

Silva Carvalho

Edições Aquário: Mem Martins, 2003

 

 

“The idea of an avant-garde in literature seems unduly naïve today. Inured to crisis, we have lost the confident sense of direction. Which way is forward?” A afirmação é de Ihab Hassan, e deixa bem clara a situação da história e da crítica literárias perante cada objecto novo. Sem um senso directivo, com a direcção periodológica assente numa história literária feita de avanços e distensões, o momento actual é estranho: lemos hoje com as armas de ontem, e os maiores riscos em que incorremos prendem-se justamente com a incapacidade de pesar o novo nas suas devidas proporções. Questão que já tinha preocupado Hans Robert Jauss, na sua Teoria da Recepção. O escritor está no seu tempo mas escreve (para) fora dele. “Não ser daqui traz-me/ toda a estranheza de ser, faz-me sentir/ a possibilidade como possível e redentora,/ o mundo aberto à generosidade futura./ Não, nenhum pensamento adverso/ vem perturbar este sigilo e esta alegria,/ esta sensação de uma presença que/ se perpetua no que repercute/ na consciência do inefável momento.” (pg. 111).

Estas mínimas considerações vêm a propósito do novo livro de Silva Carvalho, Mediocridade. Um percurso marginal (ou seja, fora do cânone – figura conservadora e preservativa, resquício cortesão), de uma extrema coerência teórica, figurativa, identitária. O discurso de Silva Carvalho não é contra o sistema (porque, como nos diz a história de todas as coisas, o discurso contra mais não é que um discurso dentro); mas situa-se numa esfera de combate com o real, em que a linguagem mais serve como espaço de pergunta e questionamento. Ou seja: não há a obsessão realista actual (geralmente filha da incapacidade do real), nem um discurso identitário balizado por preocupações externas, e ainda menos uma poesia do absoluto. Não: a língua poética de Silva Carvalho demora-se, imperturbável, numa sequência de poemas inconcisos, permanentemente questionantes, percorrendo na mesma largura a ironia e o desespero: “Nem comédia nem tragédia, nem sequer/ um romance, mas a sucessão dos dias,/ a sucessão das horas, a sucessão dos minutos,/ a sucessão dos segundos, o segundo,/ agora, agora, respirar e sentir, respirar/ e viver, agora, sempre agora, realidade/ perceptiva de quem escreve o que se passa,/ o que acontece, estar aqui, isto, isto,/ este passar passando enquanto o olhar/ vê, o corpo intui, os dedos tocam as teclas/ de um piano linguístico (…). As palavras fluindo estrangeiras delas/ mesmas nelas mesmas introduzindo/ a familiaridade de um estar, de um estar/ sendo, de um estar vivendo quanta força/ é respiração e consciência, a consciência/ de que isto não pode durar para sempre, (…) (pg. 61).

A mediocridade é precisamente o lugar deste combate: não da obra consigo, mas daquilo que a obra pergunta, como espada de Dâmocles sobre o real e o mundo; é o jogo permanente de valores que esta poesia ensaia, nos seus “capítulos-dias” (como aponta Gonçalo Furtado na sua nota ao livro) de um excessivo diálogo consigo: o mundo é medíocre, o real é medíocre, ou o muro que (n)os divide é que é medíocre? É aqui que reside a violência desta poesia: na coragem de um diálogo com uma barreira civilizacional, com tantos braços, rostos e nomes: valor, cânone, poesia.

 

Pedro Sena-Lino

 

 

 



 

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